segunda-feira, 28 de maio de 2012

Dizer o indizível


Muitas pessoas (muitas mesmo, inclusive eu) têm imensa dificuldade para explicar (algo) ou explicar-se. Sem falar no quanto é complicado traduzir em palavras determinados sentimentos, sensações e emoções experimentadas, ao testemunhar, por exemplo, uma catástrofe ou, num outro extremo, fruindo uma obra de arte. Nesses casos, comunicar o que se pensa ou sente, numa forma que seja direta e imediatamente compreensível por outra pessoa, é tarefa das mais árduas.

Esse tema aparece, de certo modo, no romance As intermitências da morte*, de José Saramago, numa passagem que será crucial para mais uma das reviravoltas pelas quais passa a narrativa.

O narrador nos conta que o violoncelista - que não havia recebido a funesta "carta violeta" da morte e, portanto, não morrera na data estabelecida - disse, em conversa com outros colegas de ofício, que seu retrato musical (ou seja, uma composição que o pudesse descrever) seria um "brevíssimo estudo de chopin, opus vinte e cinco, número nove, em sol bemol maior". Para o violoncelista, "em cinquenta e oito segundos chopin havia dito tudo quanto se poderia dizer a respeito de uma pessoa a quem não podia ter conhecido".

Na volta para casa, após um ensaio, o músico, depois de alimentar a si e ao cão de estimação, toca o Opus 25, sem saber que a morte "em pessoa" o observava, mas toca "como se tivesse percebido a presença de um terceiro em sua casa, a quem, por motivos não explicados, deveria falar de si mesmo", sem "ter de fazer o longo discurso que até a vida mais simples necessita para dizer de si mesma algo que valha a pena".

E o que sucede à morte, ouvindo a execução musical?

"A morte, porém, que por dever de ofício tantas outras músicas havia escutado, com particular relevância para a marcha fúnebre do mesmo chopin ou para o adágio assai da terceira sinfonia de beethoven, teve pela primeira vez na sua longuíssima vida a percepção do que poderá chegar a ser uma perfeita convizinhança entre o que se diz e o modo por que se está dizendo. Importava-lhe pouco que aquele fosse o retrato musical do violoncelista, o mais provável é que as alegadas parecenças, tanto as efecctivas como as imaginadas, as tivesse ele fabricado na sua cabeça, o que à morte impressionava era ter-lhe parecido ouvir naqueles cinquenta e oito segundos de música uma transposição rítmica e melódica de toda e qualquer vida humana, corrente ou extraordinária, pela sua trágica brevidade, pela sua intensidade desesperada, e também por causa daquele acorde final que era como um ponto de suspensão deixado no ar, no vago, em qualquer parte, como se, irremediavelmente, alguma cousa tivesse ficado por dizer".

Talvez só a música - e mais nenhuma outra forma de arte - possa mesmo promover "essa convizinhança entre o que se diz e o modo por que se está dizendo". Quero, porém, destacar aqui o elogio fabuloso feito por Saramago à dimensão artística da existência. A peça musical, no livro, chega a impressionar até mesmo a morte. E a narrativa do escritor português - outra forma de arte - impressiona a nós, leitores.

* SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo. Companhia das Letras, 2005

BG de Hoje

Obviamente, o Opus 25/n.9, de FRÉDÉRIC CHOPIN (nesta execução, com a pianista ucraniana VALENTINA LISITSA)