quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O ato de escrever: vaidade, autoafirmação ou compartilhamento de saber? (2)



"A vaidade está de tal forma arraigada no coração do homem que um soldado, um criado, um cozinheiro, um malandro, se gaba e pode ter seus admiradores; e os próprios filósofos pretendem o mesmo. E os que escrevem contra isso querem a glória de escrever bem, e os que os leem querem ter a glória de os ter lido; e eu, que escrevo isto, talvez tenha essa vontade, e talvez os que me lerem..."

 Pascal - Pensamentos*


"Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de conhecimento".
Carlos Drummond de Andrade, no poema América**


Comecemos falando do poema*** de João Cabral de Melo Neto citado na postagem anterior, cujos dois primeiros versos compõem uma pergunta que o poeta tentará responder com o próprio texto: "Por que é o mesmo o pudor/ de escrever e defecar?"


Escrever, neste caso, refere-se à escrita literária (mais precisamente, à produção do poema). Este é um dos textos que, a meu ver, melhor se ajustam à concepção cabralina do fazer poético. E este fazer, para João Cabral, nada tem de especialmente sublime ou inefável. Daí a magistral comparação entre o momento da geração/elaboração do texto literário (algo supostamente elevado, enobrecedor) com a cagada (aqui no sentido literal, necessidade fisiológica culturalmente associada àquilo que é reles, sórdido).

Na segunda estrofe, João Cabral nos diz que "escrever é estar no extremo/ de si mesmo [...]" ; é estar completamente nu. Daí o pudor. Mas atenção: essa vergonha aparece apenas porque o escritor/poeta não quer que outras pessoas "vejam/ o que deve haver de esgar,/ de tiques, de gestos falhos,/ de pouco espetacular/ na torta visão de uma alma/ no pleno estertor de criar". Essas reações - mais uma vez a comparação - assemelham-se às que acontecem quando estamos sentados nos vasos sanitários. E vale lembrar que alguns escritores/poetas (que, na minha opinião, são os piores) gostam de alardear que sua escrita provém, não da atividade assídua, rotineira, mas  de um "dom" singular.

No último grupamento de versos, o autor dá-se conta de um paradoxo: "o pudor de fazer/ é impudor de publicar". Deve ser por isso que há tanta merda em prosa e verso jogada na web (sendo este blog amostra inequívoca de matéria excrementícia) ... Tenciono, porém, falar de outro assunto a partir de agora.

. . . . . .

Sempre desconfio de quem não reconhece em si próprio a vaidade. Blaise Pascal (já citado na epígrafe deste texto), um dos filósofos que melhor refletiu sobre essa característica humana (e não vou me deter aqui sobre as razões que o levaram a isso), afirmara:

"Curiosidade não é senão vaidade. O mais das vezes, não se quer aprender senão para falar do que se sabe. Não viajaríamos por mar, só pelo prazer de ver, se não quiséssemos dizer algo a respeito e não esperássemos comunicar nossas impressões".

Partindo dessa passagem, e pensando no ato de escrever para além da atividade artística/ profissional, gostaria de discutir com o(a) leitor(a) o que podemos intuir hoje em dia sobre esse ato, com o advento dos blogs e, principalmente, das chamadas redes sociais, esses novos espaços da escrita, cada vez mais populares, influentes e despudorados, em certo sentido (principalmente as redes), levando em consideração o que esses "lugares" podem representar em termos de exibição vaidosa, necessidade de autoafirmação e desejo de compartilhamento de algum saber.

. . . . . .

Marcelo Coelho, recentemente, na sua (ótima) coluna da Folha de S. Paulo**** (disponível aqui), ao comentar sobre as futilidades que infestam o Facebook (e preciso admitir: "contribuo" com um bocado delas), disse ficar "aflito de ver as pessoas postando de 15 em 15 minutos, durante toda a extensão do dia. A falta do que fazer nunca deu tanto trabalho".

Admitindo sua rabugice, Coelho, no entanto, acaba vendo uma função para a rede social: seria uma "função fática", quando o que se quer é apenas enviar sinais de existência, do tipo "olha, eu tô aqui!". E percebendo que a "utilidade" do Facebook (e por consequência, parte significativa da sua lucratividade) está também ligada à ferramenta curtir, faz uma observação com a qual concordo plenamente: "Reparei que não existe, entretanto, a ferramenta oposta. O ' não curti ', que sem dúvida eu empregaria com relativa frequência, não está previsto".

E isso talvez seja bom: evitam-se brigas, que seriam ainda mais banais do que as próprias postagens.

Com tudo isso quero dizer o seguinte: na minha avaliação, o Facebook (como outros "serviços" na web, inclusive a blogosfera) é, para muitas pessoas, apenas um espaço de exibicionismo vaidoso. Entretanto, cabe perguntar: quem não é vaidoso? O problema, penso eu, é que essa rede social e os blogs (assim como o Twitter ou o Orkut) podem nos mostrar como determinadas pessoas são superficiais e a gente não percebia... Mas, pensando bem,  isso pode até ser útil: não tenho problema nenhum em "deletar" da minha lista de contatos (e também do meu convívio fora da web) pessoas que me encham o saco com seu narcisismo.

Porém, reconheço que, para muita gente, esses "serviços" criados na/pela rede mundial de computadores ajudam no caminho da autoafirmação de alguns indivíduos, como já pude comprovar com conhecidos próximos a mim, cuja aceitação de si mesmos está se tornando menos traumática.

Não seria o caso, por fim, de especular, de modo otimista (embora eu seja cronicamente pessimista), que estejamos plasmando talvez uma nova forma de gerar conhecimento, compartilhando, através desses "serviços", novas formas de saber? Quero lembrar o verso de Drummond citado na segunda epígrafe desse texto: "portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de conhecimento".

O que pensa o(a) leitor(a) dessas lucubrações?

P.S. Vale muito também ler o que escreveu Rachel Nunes (clique aqui) a respeito das ideias de Marshall McLuhan, difundidas pelo clássico livro O Meio é a Mensagem, e que, de certo modo, se relaciona com o que discuti acima.

__________
PASCAL, Blaise. Pensamentos. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [tradução de Sérgio Milliet] (Coleção Os pensadores)

** ANDRADE, Carlos Drummond de. América. In: A rosa do povo. 40 ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 150-155

*** MELO NETO, João Cabral de. Exceção: Bernanos, que se dizia escritor de sala de jantar. In: A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 90-91 [Este poema integra o livro Museu de Tudo, publicado originalmente em 1974]

***** COELHO, Marcelo. Curti (não curti) isso. Folha de S. Paulo, São Paulo, 10 ago. 2011, Caderno Ilustrada, p. 12


BG de Hoje

Os recentes "protestos" ou "desordens" (os termos variam de acordo com a posição ideológica do observador) ocorridos em Londres lembraram-me uma famosa canção do CLASH (misturando punk e reggae), The guns of Brixton (aliás, um dos distritos colocados em polvorosa nesses dias). Claro que o momento histórico era distinto deste e a banda não falava exatamente da mesma coisa, mas mesmo assim quis incluir este BG.