domingo, 7 de agosto de 2011

Dom Quixote e o sonho do leitor (2)



Hoje trato do capítulo III da Segunda Parte d'O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha *,  intitulado Do ridículo arrazoado que houve entre Dom Quixote, Sancho Pança e o Bacharel Sansão Carrasco.

Antes, dois esclarecimentos:

1) O escritor, como se sabe,  valeu-se  de  um "estratagema"  para  dar corpo a  seu romance, tal como foi inicialmente pensado:  atribuiu ele a autoria do texto "original" a um tal Cide Hamete Benengeli, obscuro sábio mouro. Desse modo, Cervantes seria apenas  o "recontador" da história, eximindo-se do que por ventura fosse considerado disparate por parte do público.

2)  Dom Quixote,  no mesmo ano de sua publicação (1605), foi reeditado seis vezes e traduzido para outros idiomas com uma rapidez incomum na época. O sucesso estrondoso motivou o aparecimento de uma segunda parte falsa. Por esta razão, Cervantes lançou, em 1615, sua própria continuação das aventuras do Cavaleiro da Triste Figura e seu escudeiro falador. Essa sequência, portanto, foi produzida sob condições especialíssimas: o livro ao qual se ligava era comentado e conhecido e isso se refletiu na Segunda Parte.

. . . . . .

Apesar da vetustez de que se revestem as obras clássicas, Dom Quixote não deixa de ser um livro engraçado, sobretudo nas passagens em que o protagonista e Sancho Pança se estrepam clamorosamente. Na conversa com Sansão Carrasco, os personagens procuram saber que façanhas foram contadas no livro a respeito deles e quais destas se destacam:

"Nisso - respondeu o bacharel - há diferentes opiniões, como há diversos gostos: uns preferem a aventura dos moinhos de vento que a Vossa Mercê lhe pareceram briareus e gigantes; outros a das azenhas; este a descrição dos dois exércitos, que depois se viu serem dois rebanhos de carneiros; aquele encarece a do morto que levavam a enterrar a Segóvia; diz um que a todos se avantaja a da liberdade dos galeotes; outro, que nenhuma iguala a dos dois gigantes beneditinos, com a pendência do valoroso biscainho".

NOTA: Na próxima (e última) postagem desta série escreverei sobre a "aventura da liberdade dos galeotes"  (capítulo XXII, da "Primeira Parte"), que acho sensacional.

Sancho e Quixote dão-se conta, então, que não só os "altos", mas principalmente os "baixos" decorrentes de suas ações foram "registrados" sem condescendência por Cide Hamete Benengeli.

Peço atenção para este trecho, por gentileza:

" - Com tudo isso - respondeu o bacharel -, dizem alguns que leram a história que folgariam se se tivessem esquecido os autores de algumas da infinitas pauladas que em diferentes recontos deram no Senhor Dom Quixote. 
 - E a verdade da história? - perguntou Sancho. 
- Poderiam deixá-las [as pauladas] em silêncio por equidade - notou Dom Quixote -, pois as ações que não mudam nem alteram o fundo verdadeiro da história, não há motivo para se escreverem, logo que redundem em menosprezo do protagonista. À fé que não foi tão pio Enéias como Virgílio o pinta, nem tão prudente Ulisses como refere Homero. 
- Assim é - redarguiu Sansão -, mas uma coisa é escrever como poeta, e outra como historiador: o poeta pode contar ou cantar as coisas não como foram, mas como deviam ser, e o historiador há de escrevê-las, não como deveriam ser, mas como foram, sem acrescentar nem tirar à verdade a mínima coisa. 
- Pois se esse senhor mouro anda a dizer verdades - disse Sancho - é, bem certo que entre as pauladas que apanhou meu amo se contem as minhas também, porque nunca a Sua Mercê lhe tomaram a medida das costas que ma não tomassem a mim de todo o corpo: mas não há que maravilhar-me, pois como diz o mesmo senhor meu, da dor da cabeça hão de participar os membros".

Cide Hamete Benengeli não seria um poeta mas um historiador. E, segundo pensa o bacharel Carrasco, está por isso mesmo mais próximo da "verdade". No entanto, nesse "ridículo arrazoado" (como o denomina Cervantes), estamos diante de três interlocutores que não são, eles próprios, "verdadeiros": são seres ficcionais saídos da cabeça de Cervantes, que brinca com este conceito tão solene - a  verdade -, dentro das possibilidades que as convenções literárias de seu tempo lhe ofereciam. E é importante destacar que, não à toa, é Sancho Pança quem faz o alerta sobre "a verdade da história".

Encerro o assunto na próxima semana.
__________
* CERVANTES DE SAAVEDRA, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: Abril Cultural, 1981 [tradução dos Viscondes de Castilho e Azevedo: notas de José Maria Castro Calvo, traduzidas por Fernando Nuno Rodrigues]

BG de Hoje

Poucos são os que discordam desta afirmação: JIMI HENDRIX foi o maior guitarrista da história. E penso não ser necessário buscar sua genialidade nas estripulias psicodélicas que gravou; basta ouvir um blues maravilhosamente tocado, como é o caso de  Red House .