segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Dom Quixote e o sonho do leitor (1)



Considero as páginas finais do Dom Quixote * uma traição.

Ah, e não estou nem aí por dar spoiler.

Antes de morrer, Dom Quixote chama seus conhecidos mais próximos, além de um médico, e se propõe a ditar seu testamento. Em conversa com a sobrinha, ele diz:

"As misericórdias [...] são as que neste momento Deus teve comigo, sem as impedirem, como disse, os meus pecados. Tenho o juízo já livre e claro, sem as sombras caliginosas da ignorância com que o ofuscou a minha amarga e contínua leitura dos detestáveis livros das cavalarias. Já conheço os seus disparates e os seus embelecos e só me pesa ter chegado tão tarde este desengano, que não me desse tempo para me emendar, lendo outros que fossem luz da alma. Sinto-me, sobrinha, à hora da morte; quereria passá-la de modo que mostrasse não ter sido tão má a minha vida que deixasse renome de louco, pois, apesar de o ter sido, não quereria confirmar essa verdade expirando".

A "leitura dos detestáveis livros das cavalarias" significou tempo perdido. Pior: insanidade. Melhor seria ter lido "outros que fossem luz da alma" (e quais seriam estes?). O personagem imortal de Cervantes, nesse último capítulo, acaba traindo a todos nós, insaciáveis e devotados leitores de ficção.

Seus próprios leitores.

. . . . . .

Já escrevi, em outras oportunidades, que a ficção nos redime da realidade. A Literatura é muito superior à existência justamente por tornar esta menos insuportável. Poemas e narrativas são muitas vezes desagradáveis, é verdade; a vida, entretanto, é assim o tempo todo, segundo penso.

Viver ou ler?

De forma "simpática" (e um tanto anódina), eu poderia responder: viver lendo.

Do fundo de mim, contudo, ouço o grito:  "LER!  LER É A ÚNICA VIDA QUE VALE A PENA SER VIVIDA! TODO O RESTO É CANALHICE E SORDIDEZ "

Por ora, voltemos ao livro de Cervantes.

. . . . . .

Na primeira parte do romance  (capítulos XLIX e L), o amalucado Cavaleiro da Triste Figura mantém discussão com um cônego que acompanhava a comitiva a levar Dom Quixote de volta à casa. O religioso fica estupefato com a persistente crença do outro nas aventuras narradas nos livros de cavalaria. E exorta o fidalgo da Mancha a procurar "verdades grandiosas e feitos tão reais como denodados" na Sagrada Escritura e nos relatos façanhosos de potentados do passado. Por fim, acha estranhíssimo que um homem com tanto entendimento possa desperdiçar sua atenção com tais inutilidades livrescas. Dom Quixote, então, defende a fantasia literária:

"Cale-se Vossa Mercê, não diga semelhante blasfêmia, e creia-se, que nisto lhe aconselho o que deve fazer como discreto; senão, leia-os, e veja o prazer que a sua leitura lhe dá [...]. Creia-me Vossa Mercê, e, como já lhe disse, leia estes livros, e verá como lhe desterram a melancolia e lhe melhoram a condição, se acaso a tiver má. Eu de mim sei que depois de me ter metido a cavaleiro andante, sou bravo, comedido, liberal, bem-criado, generoso, cortês, audaz, brando, paciente, sofredor de trabalhos, de prisões, de encantamentos [...]"

Quase todo o Dom Quixote - com exceção do capítulo final e das novelas paralelas inseridas nele - é a narração de uma "existência" consagrada à experiência literária, imersa num plano em que as exigências do real se digladiam com as recompensas da imaginação. E não é raro que esta última vença.

Não é este o sonho de todo leitor?

Prossegue na próxima postagem.
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* CERVANTES DE SAAVEDRA, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. São Paulo: Abril Cultural, 1981 [tradução de Viscondes de Castilho e Azevedo; notas de José Maria Castro Calvo, traduzidas por Fernando Nuno]

BG de Hoje

GUNS'N'ROSES é uma banda detestável, sob vários ângulos. Mas já fui jovem. Jovem e besta. Mais besta do que hoje. E já tive discos do grupo. Naquela época, uma garota de quem gostava muito me desprezava completamente. Ela tinha razão. Mas o rejeitado dificilmente aceita as coisas à luz dos fatos. Ficava puto (sem razão) e, em casa, ouvia a versão acústica de You're Crazy (ótima, aliás), remoendo o despeito...