quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Automóveis




Meu camarada Pirata Z (que agora atende também pelo nome de Z Ninguém), certa vez, desenvolveu o seguinte "postulado" (não sei se foi exatamente com estas palavras, mas o sentido era o mesmo): "nem todo mundo que tem carro é imbecil, mas todo imbecil tem um carro". Concordo inteiramente.

Quase fui atropelado ontem, atravessando a avenida, indo da instituição em que estudo para o local onde trabalho.

Não invadi a pista feito um celerado: o semáforo estava fechado para os veículos. Passado o susto, fui lembrar de uma canção gravada pela Zélia Duncan* (Minha fé), na qual ela manifesta seu desejo de (pelo menos) tentar acreditar "na bondade dos automóveis/ enquanto imóveis/ em suas garagens". Essas máquinas não são confiáveis; seus condutores, menos ainda.

É curioso: as pessoas, de um modo geral, têm dificuldade para reconhecer que são incompetentes em algumas atividades. Com esforço, admitem uma ou outra limitaçãozinha. Mas você dificilmente verá um cidadão reconhecer duas coisas: que transa mal ou que dirige mal. E nunca se viu tanta gente carente de sexo e tantos acidentes de carro "nessa longa estrada da vida"...

Contardo Calligaris, em ótima crônica**, traçou diversos modos do pedestre atravessar as ruas em vários lugares (Boston, Nova York, cidades europeias). Ao falar de São Paulo, Calligaris notou que o paulistano - já na via - não olha mais para os veículos. Uma das interpretações do cronista (a "mais heroica") para tal atitude é a seguinte:

"talvez, para as vítimas [do possível atropelamento] que não valem nada, atravessar sem olhar seja um modo de afirmar que sua dignidade é mais importante que a própria vida: ' Acha que sou um escravo? Pois é, sou capaz, como o mestre antigo, de desafiar a morte. Resta saber se você será capaz de me matar".

Sincera e covardemente, prefiro não pagar pra ver.

Até o Cinema, tão responsável pela glamourização dos veículos automotores, não deixou de exibir o lado sombrio e funesto destes. Que não me deixem mentir Encurralado (dirigido por Steven Spielberg, 1971), Mad Max (George Miller, 1979) e, o melhor de todos, Christine (John Carpenter, 1983).

Contudo, a associação entre a capacidade de matar dos carros e sua condição de símbolo de status e poder não poderia ter sido melhor explorada do que nos contos Passeio noturno (parte I) e Passeio noturno (parte II)***, de Rubem Fonseca.

"Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu pra ver que o corpo todo desingonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio", lê-se na primeira narrativa. Na segunda:

"Apaguei as luzes e acelerei o carro. Tinha que bater e passar por cima. Não podia correr o risco de deixá-la viva. Ela sabia muita coisa a meu respeito, era a única pessoa que havia visto o meu rosto, entre todas as outras".

Quer carona?

* Minha fé (Lucina/ Zélia Duncan), do disco Intimidade, 1996, WEA

** CALLIGARIS, Contardo. Pedestres. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 mai. 2009. Caderno Ilustrada, p. 11

*** FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994