terça-feira, 3 de março de 2009

O que é Literatura, afinal? (2)


"[...] ele mesmo uma expressão ampliada do seu filho, envolto sempre no próprio labirinto. É um projeto artístico, ou um projeto terapêutico? - ele se pergunta às vezes, caneta à mão, diante da página em branco".

Cristovão Tezza - O filho eterno



Um dos adjetivos mais empregados para caracterizar O filho eterno, de Cristovão Tezza (Ed. Record, 2007) foi "corajoso". Li-o em duas ou três resenhas e ele está, inclusive, na orelha do próprio livro. Acho que isso se deve ao fato de que o narrador não se perde em circunlóquios ao abordar o tema central da narrativa - a saber, a relação de um pai com o filho, que tem síndrome de Down.

Com efeito, o narrador registra:

"Em poucos minutos - ele não pensou nisso, mas era o que estava acontecendo - aquela criança horrível já ocupava todos os poros de sua vida."

Em certo momento, as crianças na mesma condição do filho são chamadas de "pequenos ogros de boca aberta"...

Não há eufemismos, preocupações de atenuação. Por partir da experiência vivida diretamente pelo escritor, fico imaginando o impasse experimentado por Tezza ao decidir colocar algo relacionado à sua vida pessoal, imediatamente reconhecível, dentro de um romance:

"E ele escreve de outras coisas, não de seu filho ou de sua vida - em nenhum momento, ao longo de mais de vinte anos, a síndrome de Down entrará no seu texto. Esse é um problema seu, ele se repete, não dos outros, e você terá de resolvê-lo sozinho."

Na postagem anterior, a ironia do escritor foi mencionada. Ela não deixa de comparecer em O filho eterno:

"Não há mongoloides na história, relato nenhum - são seres ausentes. Leia os diálogos de Platão, as narrativas medievais, Dom Quixote, avance para a Comédia humana de Balzac, chegue a Dostoiévski, nem este comenta, sempre atento aos humilhados e ofendidos; os mongoloides não existem [...] Em todo o Ulisses, James Joyce não fez Leopold Bloom esbarrar em nenhuma criança Down, ao longo daquelas 24 horas absolutas. Thomas Mann os ignora rotundamente".

Há dois pontos a serem ressaltados nessa altura da argumentação. O primeiro é óbvio: não há tema proibido na Literatura. O segundo é: até que ponto (e em que intensidade) a vida privada enseja boa ficção?

Posso dizer que a própria maneira de olhar para si mesmo - no caso, o narrador de O filho eterno - já é Literatura, uma vez que sentimentos e percepções nos são transmitidos através de uma linguagem especialmente organizada para isso.

Mas a pergunta permanece: o que é literatura afinal? Na próxima postagem - a última da série - segue a discussão, desta vez com Bernardo Carvalho, Nabokov e Guimarães Rosa.