"A literatura é o que não se vê. A literatura se engana. Enquanto os escritores escrevem, as histórias acontecem em outro lugar".
Bernardo Carvalho - O sol se põe em São Paulo
Faço uma rápida busca na web e fico sabendo que o teatro kyogen surgiu no Japão, aproximadamente no século XIV, e que é um estilo cômico, com apresentações curtas nos intervalos dos espetáculos de nô (ou noh, como queiram). Com o tempo foi adquirindo certa autonomia e tornando-se um gênero à parte.
No romance O sol se põe em São Paulo, de Bernardo Carvalho (Companhia das Letras, 2007), um dos personagens, chamado Masukichi, é um obscuro e pouco talentoso ator de kyogen. Em seu aprendizado, o ator começou usando a máscara necessária ao papel do macaco, quando ainda era criança. Segundo a tradição, o auge da educação cênica no kyogen consiste na capacidade de interpretar, depois de uma certa "bagagem", o papel da raposa, não precisando mais da máscara para convencer a platéia.
No entanto, em determinado momento da narrativa, outra personagem do romance - esta, fundamental - diz:
"Por mais longe que você vá, por mais que eles tentem confiná-lo a um papel e a um lugar que não são seus, você leva sempre as máscaras consigo".
O sol se põe em São Paulo é justamente isto: um romance em que as constantes trocas de máscaras, papéis (e identidades) fazem-no uma agradável jornada de leitura.
Setsuko, Michiyo, Jokichi, Masukichi. Todos esses personagens - com seus pequenos grandes dramas particulares - produzem as diversas histórias a serem reunidas pelo escritor "de aluguel" que é o principal narrador do livro.
E aqui vale dizer que esse narrador, não obstante ser ele descendente de imigrantes japoneses que foram para São Paulo, tem muito em comum com o próprio Bernardo Carvalho. Numa certa passagem, ele escreve: "Na adolescência, fui um leitor voraz de relatos de viagem [...]". Seria a voz do próprio escritor?
A curiosidade surge porque Carvalho produziu alguns de seus livros a partir das viagens que realizou, como, por exemplo, seu último romance (lançado este ano), O filho da mãe, passado na Rússia, e cujos detalhes (pelo menos alguns) nos foram contados numa palestra dada pelo escritor, há quase dois anos, na UFMG. Em O sol se põe em São Paulo, há ainda outra passagem que corrobora a vinculação da experiência do narrador com a do autor.
Um personagem - o homem do lábio leporino - diz em certo trecho:
"As viagens deixam a gente em estado de alerta. Você passa a ver as coisas que os outros não veem. Isso não quer dizer que seja mais verdade que os outros, quer dizer apenas que vê mais - ou menos - mas nunca o mesmo que os outros. Você passa a ver sozinho. É o estado ideal do escritor".
E mesmo sendo uma história centrada nas vidas de personagens japoneses e de como foi o desfecho (de algumas) delas no Brasil, após a Segunda Guerra, não se deixa de olhar criticamente nosso país. Escreve o narrador:
"São Paulo não se enxerga - ou não chamaria periferia de periferia. Não é só eufemismo. Chamam-se de excluídos aos oitenta por cento da população. Não é à toa que é uma cidade de publicitários. Em São Paulo, publicidade é literatura [...]."