quarta-feira, 11 de março de 2009

Anedotário

Aproveitando o assunto "rivalidade" entre as noções de realidade e ficção, escreverei hoje sobre um livro que também trata da relação pai-e-filho, por meio de recordações: trata-se do Quase memória, de Carlos Heitor Cony (Ed. Companhia das Letras, 1995).

Logo no prefácio (intitulado Teoria Geral do Quase), o autor indica as limitações para encaixar esse livro num gênero textual fora de dúvida: "daí a repugnância em considerar este Quase memória como romance. Falta-lhe, entre outras coisas, a linguagem. Ela oscila, desgovernada, entre a crônica, a reportagem e, até mesmo, a ficção"E apesar de incluir personagens que tiveram existência de carne e osso, Cony afirma que todos "os personagens, reais e irreais se misturam improvavelmente" e "uns e outros são fictícios".
 
Um desses personagens - justamente o protagonista - é Ernesto Cony Filho, pai do escritor, e que segundo o autor, obedecia "à tradição dos melhores narradores da história, de Homero em diante."

Jornalista não muito talentoso, Ernesto, entretanto, conseguia empregar em lances de sua vida privada - e, ocasionalmente, também na sua vida pública - certos "truques" que o faziam, a seu modo, um tanto fora do comum. No fundo, Quase memória acaba sendo o relato de vários desses episódios nos quais Ernesto se meteu ou pelos quais foi o principal responsável. E para dar alguma unidade ao texto, o narrador lança mão de um embrulho recebido anos após a morte do pai e que funciona como uma espécie de gatilho para as lembranças.

No capítulo 13, o narrador escreve:

"Se me metesse a escrever um livro sobre o que está acontecendo, alguém acharia nesse embrulho, vindo brutal e inesperadamente do passado, uma referência, associação ou plágio da madeleine de Proust - e aí me cobrariam um romance. E como não há romance, além da pretensão, constatariam o meu fracasso."

O narrador percebe que, na sua tentativa, o tempo "ficou fragmentado em quadros, em cenas que costumam ir e vir de minha lembrança". Tudo isso não chega a formar uma memória coesa e contundente: "uma quase-memória, ou um quase-romance, uma quase-biografia. Um quase-quase que nunca se materializa em coisa real como esse embrulho, que me foi enviado tão estranhamente".

Ao final da leitura deste livro, ficou-me a sensação de ter diante de mim um simples anedotário, em que as características do personagem central eram ilustradas por suas ações, sempre peculiares, e que por si só serviriam para conduzir e construir a narrativa. Não há dúvida de que alguns desses pequenos relatos - mais adequados à crônica, no que Cony é muito bom - são emocionantes (como o capítulo 20, destacado pelo Ruy Castro), mas que, somados, não dão ao livro a mesma inteireza e simpatia que emanam de seu protagonista.