sexta-feira, 7 de julho de 2017

Situando a poesia de Adélia Prado (II)




Numa breve entrevista publicada um tempinho atrás no jornal O Globo (disponível aqui), quando perguntada como recebera a nova edição de sua Poesia reunida (já que a autora não ficou contente da primeira vez ¹), Adélia Prado respondeu:

"A primeira coisa que uma obra completa me lembra é: somos mortais. Um copo de plástico dura mais que a mais longa vida. Diferentemente de 1991, quando esperneei um pouco, recebo agora a edição sem estridências ², feliz e agradecida. Tem ainda um atenuante joia a meu favor, dois poemas novos. Assim escapo. Fica mais difícil me tornar veterana. Espero morrer caloura, como sempre me vejo".

A poeta pode olhar para si como caloura. Nós, entretanto, não precisamos fazer o mesmo. Desde 1975-76, quando Bagagem veio a público, Prado foi consolidando, paulatinamente, uma obra vigorosa. E embora outros(as) autores(as) me interessem mais, (o que não quer dizer que não a aprecio), considero-a, atualmente, a grande poeta viva da literatura brasileira, sobretudo por ser a mais popular -, como venho defendendo desde a postagem anterior ³.

Ainda em virtude da nova publicação da Poesia reunida, a Folha de S. Paulo produziu uma pequena matéria que apresentava outra breve entrevista com Adélia Prado (disponível aqui). Lembrou-se na matéria que, em 2000, a poeta dissera ao jornal paulistano que "toda pessoa deveria receber uma homenagem em vida", quando foi tema de um dos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles, acrescentando em seguida: "Poucas coisas são tão incômodas, mas nada melhor para ver o próprio tamanho".

O crítico literário, poeta e professor da USP Augusto Massi, no ensaio Móbile para Adélia (disponível aqui), afirma que

"Hoje, Adélia faz parte da paisagem literária. Sua fortuna crítica não para de crescer, quase ultrapassou uma centena de teses universitárias, ganhou os palcos e rompeu as fronteiras da língua. Encontra-se editada em inglês, italiano, espanhol, e poemas avulsos foram traduzidos para o alemão, francês, polonês e chinês".

Tais informações, mais do que a função meramente laudatória, balizam um pouco o "tamanho" da escritora.

Onde residiria a força de seus textos?

Rita Olivieri (hoje Olivieri-Godet), professora da Université de Rennes 2 e autora de uma tese de doutorado intitulada Mística e erotismo na poesia de Adélia Prado, acredita que a poeta realiza escolhas estilísticas cujo resultado é "uma linguagem que alia a simplicidade dos acontecimentos do quotidiano à gravidade da reflexão sobre o sentido da existência" . Segundo Olivieri, "Adélia Prado debruça-se sobre o vivido, transformando-o em matéria poética. Sua poesia desentranhada do quotidiano, centrada nas miudezas do dia-a-dia, extrapola os limites do seu espaço mineiro, abrindo-o para o mundo".  

Tentemos ilustrar isso tudo lendo O alfabeto no parque , um dos poemas de Adélia Prado de que mais gosto. Esse texto faz parte do livro Terra de Santa Cruz, terceiro publicado pela autora (lançado originalmente em 1981) e que, de acordo com Augusto Massi, forma a "santíssima trindade do seu modo poético", junto com os anteriores - Bagagem (1976) e O coração disparado (1978).


O ALFABETO NO PARQUE

Eu sei escrever.
Escrevo cartas, bilhetes, lista de compras,
composição escolar narrando o belo passeio
à fazenda de vovó que nunca existiu
porque ela era pobre como Jó.
Mas escrevo também coisas inexplicáveis:
quero ser feliz, isto é amarelo.
E não consigo, isto é dor.
Vai-te de mim, tristeza, sino gago,
pessoas dizendo entre soluços:
'não aguento mais'.
Moro num lugar chamado globo terrestre
onde se chora mais
que o volume das águas denominadas mar,
para onde levam os rios outro tanto de lágrimas.
Aqui se passa fome. Aqui se odeia.
Aqui se é feliz, no meio de invenções 
                                                       miraculosas.
Imagine que uma dita roda-gigante
propicia passeios e vertigens entre
luzes, música, namorados em êxtase.
Como é bom! De um lado os rapazes.
Do outro as moças, eu louca pra casar
e dormir com meu marido no quartinho
de uma casa antiga com soalho de tábua.
Não há como não pensar na morte,
entre tantas delícias, querer ser eterno.
Sou alegre e sou triste, meio a meio.
Levas tudo a peito, diz minha mãe,
dá uma volta, distrai-te, vai ao cinema.
A mãe não sabe, cinema é como dizia o avô:
'cinema é gente passando.
Viu uma vez, viu todas'.
Com perdão da palavra, quero cair na vida.
Quero ficar no parque, a voz do cantor açucarando a tarde...
Assim escrevo: tarde. Não a palavra.
A coisa.

Os cinco primeiros versos estão "centrados na miudeza do dia-a-dia"; descrevem ações triviais, familiares - uma maneira da poeta atrair e capturar o leitor ressabiado. Quando este chega à sexta linha - "Mas escrevo também coisas inexplicáveis" - bum! já está envolvido com o texto. Adélia Prado quase sempre confere a seus poemas uma aparência de espontaneidade: como nota Rita Olivieri, trata-se de uma "espontaneidade fabricada", graças a opção da poeta pelo "estilo simples, anti-retórico".

O nono verso exibe-nos uma faceta conhecida de seu eu-lírico (pelo menos nessa fase da autora): a recusa em ser triste. Lembremos, por exemplo, o final de poemas como Atávica ("Por prazer da tristeza eu vivo alegre") e Momento ("[...] A vida é mais tempo alegre do que triste. Melhor é ser"), ambos do livro Bagagem. Ou ainda Cinzas ("O que escrevi, escrevi/porque estava alegre") e Códigos ("Quero estar cheia de dor mas não quero a tristeza"), textos, nesse caso, incluídos em O coração disparado. Entretanto, como veremos logo adiante, a partir do livro Terra de Santa Cruz, isso começa a mudar um pouco.

E chegamos a meu trecho favorito de O alfabeto no parque:

"Moro num lugar chamado globo terrestre
onde se chora mais
que o volume das águas denominadas mar,
para onde levam os rios outro tanto de lágrimas.
Aqui se passa fome. Aqui se odeia.
Aqui se é feliz, no meio de invenções 
                                                       miraculosas.

Nota-se, de imediato, nessa passagem, a "extrapolação do limite do espaço mineiro" e "a abertura para o mundo",  como mencionara acima Rita Olivieri: o eu-lírico percebe-se habitante de um "lugar chamado globo terrestre" e não mais apenas de Divinópolis, cidade natal de Adélia Prado e onde a artista vive até hoje. E esse lugar, o planeta como um todo, não é habitualmente o lugar da alegria: passa-se fome nele, há ódio e incontáveis lágrimas. E por falar nestas, é quase inevitável - em se tratando de uma poeta tão aferradamente católica como Prado -  não vir à mente do leitor aquela concepção cristã do mundo, do plano terreno, como um vale de lágrimas (que geralmente remete seus fiéis ao célebre Vale de Baca, do Salmo 84, ou, com mais frequência ao Evangelho de João, capítulo 16, versículo 33, quando Jesus avisa a seus seguidores que estes terão "tribulações" na terra, mas que é preciso ânimo, pois ele, Jesus, vencera o mundo).

Mas aqui também se é feliz, diz a poeta, "no meio de invenções/miraculosas". O adjetivo miraculosas, afastado da margem, é bem significativo. Invenções são coisas humanas. Mas - e não nos esqueçamos, falamos aqui de uma escritora profundamente religiosa -, não existiriam sem uma intervenção divina na ordem natural, sem um milagre.

Ao escrever que "aqui se passa fome/aqui se odeia", a poeta vai assumindo sua porção mais crítica, que desembocará em poemas de forte conteúdo político, como alguns dos que integram a seção Catequese do livro Terra de Santa Cruz. E a recusa em ser triste de que falávamos passa a ser mais difícil.

No verso 18, o eu-lírico volta a descrever trivialidades, até chegar em

"Não há como não pensar na morte,
entre tantas delícias, querer ser eterno.
Sou alegre e sou triste, meio a meio".

Como vimos anteriormente, a professora Rita Olivieri destaca que Prado exercita "uma linguagem que alia a simplicidade dos acontecimentos do quotidiano à gravidade da reflexão sobre o sentido da existência". E é isso o que o trecho acima ilustra. Entre as delícias (música e diversão no parque, casais de namorados felizes, sonhos de matrimônio), inevitável não pensar na morte. Mas - e isso é importantíssimo - a morte. aqui, não é pura negatividade: é através dela que se pode atingir a dimensão da eternidade (e, quem sabe, prolongar as delícias). A perspectiva da vida eterna é crucial aqui. Como é no poema Porfia, publicado no livro anterior:

"Inventou-se o ferro de brasa
por causa da Vida Eterna.
Senão, pra que vincar o terno,
se todo fim é madeira carcomida,
ossos tão limpos que dispensam nojo?
Pela mesma razão,
os metafísicos armam seus solilóquios,
os governantes bons governam com justiça,
o meu decote é fundo".

Da simplicidade dos acontecimentos do quotidiano à gravidade da reflexão sobre o sentido da existência.

O alfabeto no parque retoma, em seguida, a cotidianidade, narra um cena caseira, até chegar a seu belíssimo fechamento, de difícil decifração:

"Assim escrevo: tarde. Não a palavra.
A coisa".

. . . . . . . 

Acredito que o(a) eventual leitor(a), caso não tenha familiaridade com a poesia de Adélia Prado, pode pelo menos ter uma ideia das virtudes de sua escrita.

Ainda tenho muito para falar - não só sobre os poemas dessa autora (não analisei Sítio, como avisara que faria hoje na postagem anterior), mas também devo tratar de uma questão que deixei em aberto na semana passada sobre o ato de ler poesia atualmente, bem como gostaria de discutir outros aspectos da figura pública que é Adélia Prado, aspectos apenas tangenciais à sua obra, mas dos quais acho importante falar, além de fazer algumas considerações sobre poesia brasileira contemporânea.

Entretanto, como esta postagem já está quilométrica, deixarei para a semana que vem.

____________
¹ A primeira reunião da obra poética de Adélia Prado foi publicada em 1991, pela extinta editora Siciliano. Em 2015, a editora Record lançou um novo volume da Poesia reunida (para marcar os 40 anos de carreira e os 80 anos de idade da escritora), incluindo os poemas dos livros Oráculos de maio, A duração do dia e Miserere, publicados após 1991. Na época da primeira edição da Poesia reunida, Prado ficou um pouco incomodada, pois a publicação pareceu-lhe uma "homenagem póstuma". 

² Essa declaração me lembra o poema Trégua, do livro Bagagem:

"Hoje estou velha como quero ficar.
Sem nenhuma estridência.
Dei os desejos todos por memória
e rasa xícara de chá".

³ A propósito, logo na introdução da dissertação de mestrado de Ana Lúcia Moret (Tradição e modernidade na obra de Adélia Prado), a pesquisadora, ressaltando como se deu o "ingresso" da escritora nos círculos literários brasileiros, escreve:

   "Impossível ficar indiferente a tal apresentação [feita por Carlos Drummond de Andrade, numa crônica publicada no Jornal do Brasil], sobretudo se ela parte de um poeta tão querido e respeitado. Isso talvez explique, em parte, a popularidade de Adélia Prado junto aos diversos setores da nossa sociedade - público leitor, editores, jornalistas, intelectuais. Seus leitores têm a impressão de que a escritora mineira penetra no mercado já consagrada, para o que também contribui o discurso da crítica, que sempre procurou reforçar o aspecto inovador e universalizante de sua poética".
     Ana Lúcia Moret também observou que, em 1991, Prado alcançou a marca de 100 mil exemplares de livros vendidos, "números pouco comuns para a boa poesia no mercado brasileiro". (MORET, Ana Lúcia. Tradição e modernidade na obra de Adélia Prado. 1993. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 1993. Disponível em <http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/269889>. Acesso em: 27/06/2017.

Esse ensaio serviu como posfácio na edição da Poesia reunida de Adélia Prado publicada em 2015 pela editora Record.

OLIVIERI, Rita. Poesia e oralidade na obra de Adélia Prado. Sitientibus, Feira de Santana, n. 13, p. 121-126, jul-dez. 1995. Disponível em <http://www2.uefs.br/sitientibus/pdf/13/poesia_e_oralidade_na_obra_de_adelia_prado.pdf>. Acesso em 25/06/2017

Os poemas de Adélia Prado citados ou reproduzidos nesta postagem foram extraídos de sua Poesia reunida, mas no volume publicado em 1991 pela editora Siciliano.

⁷ No poema Cinzas (do livro O coração disparado), a poeta já escrevera:

"Este vale é de lágrimas.
Se disser de outra forma, mentirei."

BG de Hoje

Na postagem anterior eu falei sobre o talento poético dos letristas brasileiros. Um dos melhores, atualmente, é CARLOS RENNÓ, cujas parcerias incluem músicos como Lenine (com o qual compôs a belíssima Todas elas juntas num só ser), Chico César, Arrigo Barnabé, Gilberto Gil, Rita Lee, entre outros (vale lembrar que Rennó é autor da letra do mega-sucesso Escrito nas estrelas, gravado por Tetê Espíndola nos anos 1980). Em , um xote interpretado pela cantora paulistana MARIANA AYDAR (filha do Mário Manga, não custa mencionar, integrante do cultuado grupo Premeditando o Breque), Carlos Rennó fez parceria com Roberta Sá e Pedro Luís (que também gravou a faixa num disco solo)