sábado, 15 de julho de 2017

Situando a poesia de Adélia Prado (III)


Já reli O feijão e o sonho não sei quantas vezes, desde os meus 13, 14 anos. Nas primeiras leituras, tomava inteiramente o partido de Maria Rosa e só muito mais tarde, adulto bem mais velho, consegui comover-me um pouco com a figura de Campos Lara, "aquele pobre lutador a seu modo" ¹.

Como se sabe, o despretensioso livrinho de Orígenes Lessa, publicado pela primeira vez em 1938, tem como protagonista um poeta - "um inadaptado, um incapaz para a vida prática" - que não consegue estabelecer-se como escritor. Suas outras ocupações, mal remuneradas ou precárias (mestre-escola, jornalista), não rendiam o suficiente para sustentar a família, o que ocasionava constantes desentendimentos com a esposa: "Maria Rosa não era uma inimiga. Maria Rosa era o outro lado da vida. O lado em que não daria coisa nenhuma, em que ele sempre fracassaria. O duro. O difícil. O sem cadência nem rima. O do seu permanente naufrágio. O lado onde jamais deveria ter ingressado".

Mas após trinta anos de insistência - tendo, contudo, abandonado a poesia, pois "verso não dava lucro" - Campos Lara "tornara-se o grande romancista do país. Tinha um grande nome nacional". E tanta dedicação rendeu a ele uma modestíssima sinecura: um cargo de "amanuense de uma secretaria de Estado", pelo qual recebia "pouco mais do que um empregado de escritório".

O fato é que finalmente "chegara ao clímax da sua carreira. Todas as consagrações literárias o haviam coroado. As academias o disputavam. Os jornais. As revistas". Mas à glória atingida (que não significou nenhuma recompensa financeira de monta) seguiu-se "a demolição". Acompanhemos a passagem seguinte (ajudará muito no tema principal da postagem de hoje):

"[...] Uma turba irreverente, trinta anos mais moça, procurava lugar ao sol. Feita de outros sonhos, de outras tendências, de outras inquietações. Devorada por outros problemas. Buscando o seu rumo. Procurando afirmar-se.

E na ânsia de ocupar lugar, de encher a terra, não podia tolerar os velhos ídolos. Campos Lara fizera-se um ídolo. Campos Lara tornou-se um papão. Sua voz nada significava, reboava sem eco pelas quebradas do país.

A princípio, foi apenas a incompreensão, a perda de contato. Depois foi preciso destruir.

E um dia uma voz moça, um nome desconhecido, abriu fogo. Escândalo. Revolta. Mais outra voz. E mais outra. Eram os devoradores. Era a nova geração. A que seria a seu tempo devorada.

E a palavra de ordem dos moços passou a ser a destruição de Campos Lara! Escarneciam da sua obra, zombavam do seu feitio, ridicularizavam a sua atitude, a filosofia, a forma, os cacoetes literários".

Tenho insistido, desde a primeira postagem desta série sobre Adélia Prado, que a escritora mineira é a grande poeta brasileira viva (não sou só eu, muita gente acha o mesmo - Elisa Lucinda, por exemplo). A avaliação que faço, contudo, é menos um enaltecimento (afinal, desnecessário) da obra de Prado (pois evidências de sua consagração não têm faltado) do que um modo de estabelecer um ponto referencial a partir do qual venho tentando transitar no variegado e multiforme mundo da poesia brasileira contemporânea nos últimos anos ².

E o que o "caso" de Campos Lara tem a ver com isso?

Tal como o personagem de Orígenes Lessa (mas sem passar por caminho tão acidentado), Adélia Prado virou "um nome nacional"; chegou, acredito, à condição de "ídolo". Mas terá ela se tornado uma "papona", aquele tipo de autor contra quem seus "concorrentes" - ou seja, os outros poetas - precisam abrir fogo, escarnecer "de sua obra, [zombar] do seu feitio, [ridicularizar] a sua atitude, a filosofia, a forma, os cacoetes literários"?

Antes, porém, de tentar responder esse questionamento, gostaria de falar um pouco sobre um poema de Adélia Prado - chamado Sítio ³ - do qual gosto muito.

. . . . . . .

SÍTIO

Igreja é o melhor lugar.
Lá o gado de Deus para pra beber água,
rela um no outro os chifres
e espevita seus cheiros
que eu reconheço e gosto,
a modo de um cachorro.
É minha raça, estou
em casa como no meu quarto.
Igreja é a casamata de nós.
Tudo lá fica seguro e doce,
tudo é ombro a ombro buscando a porta estreita.
Lá as coisas dilacerantes sentam-se
ao lado deste humaníssimo fato
que é fazer flores de papel
e nos admiramos como tudo é crível.
Está cheia de sinais, palavra,
cofre e chave, nave e teto aspergidos
contra vento e loucura.
Lá me guardo, lá espreito
a lâmpada que me espreita, adoro
o que me subjuga a nuca como a um boi.
Lá sou corajoso
e canto com meu lábio rachado:
glória no mais alto dos céus
a Deus que de fato é espírito
e não tem corpo, mas tem
o olho no meio de um triângulo
donde vê todas as coisas,
até os pensamentos futuros.
Lugar sagrado, eletricidade
que eu passeio sem medo.
Se eu pisar,
o amor de Deus me mata.

Sítio pertence ao livro Bagagem, o primeiro publicado pela autora. Um dos principais traços da poética de Adélia Prado, o despojamento (melhor seria falar em despojo - ou seja, a retirada de enfeites, ou de ornamentos considerados supérfluos) salta aos olhos desde a primeira sequência de versos (é possível notar também um certo eco roseano):

"Igreja é o melhor lugar.
Lá o gado de Deus para pra beber água,
rela um no outro os chifres
e espevita seus cheiros
que eu reconheço e gosto,
a modo de um cachorro".

Prestemos um pouco mais de atenção nesta outra passagem:

"Lá as coisas dilacerantes sentam-se
ao lado deste humaníssimo fato
que é fazer flores de papel
e nos admiramos como tudo é crível".

A professora e pesquisadora Rita Olivieri (a quem também citamos na postagem anterior) afirma que essa "voz poética, embora sabendo-se finita e imersa na rotina do cotidiano, anseia por transcendência". As simultâneas superposições entre o imanente e o transcendente acabam conduzindo muitos dos textos de Prado a "um modo de articulação da linguagem que favorece a aproximação entre o prosaico e o poético". A barafunda metafísica da religião e seus mitos - "as coisas dilacerantes" - convivem numa boa com o ato inteiramente mundano de "fazer flores de papel". E como observou o crítico literário (e também poeta) Augusto Massi , "os poemas de Adélia Prado alcançaram um perfeito equilíbrio entre a graça e a gravidade". 

Talvez seja importante a essa altura deixar registrado um pequeno esclarecimento. Se você que está lendo este texto (aliás, agradeço imensamente) por acaso já visitou o Besta Quadrada noutras oportunidades (agradeço mais ainda), possivelmente sabe que o blogueiro é ateu. Não seria estranho, portanto, que este dedique seu tempo à leitura de uma escritora capaz de escrever, na abertura de um outro poema seu, "Quem me socorre é Deus e toda corte celeste/com seus anjos e santos" e faz da divindade um de seus temas centrais?

Numa entrevista ao programa Roda Viva, em 2014 (disponível aqui), Adélia Prado disse algo que me auxilia nessa resposta:

"Se eu fosse ateia ou agnóstica faria poesia do mesmo jeito [...]. É um dom, uma graça, não é nenhum mérito meu. Mas eu faria outra poesia. Não é a fé que [me] faz fazer poesia. A fé é constitutiva da minha experiência humana; então, necessariamente, ela aparece na minha poesia".

Parafraseando-a, eu diria: não é a descrença (na religião, na sobrenaturalidade ou nalguma divindade) que determina meus interesses literários. O ateísmo é constitutivo da minha experiência humana; então, necessariamente, às vezes não consigo deixar de falar e escrever sobre isso. O que não me impede de apreciar a poesia de Adélia Prado.

Agora, é oportuno notar na fala da poeta reproduzida acima, o seguinte trecho: "[Fazer poesia] é um dom, uma graça, não é nenhum mérito meu". Entretanto, caso ela fosse ateia, nada disso faria sentido - pois ateus não acreditam em dom ou graça divina. O importante aqui, porém, é a declaração: "não é nenhum mérito meu".

Uai (como se diz aqui em Minas Gerais), se é assim, pra que serviria o poeta (no caso, a poeta) então?

Nossa discussão, portanto, deve agora seguir noutra direção e encaminhar-se para seu encerramento.

. . . . . . .

No poema A formalística, do livro A faca no peito (publicado em 1988), Adélia Prado escreveu:

"O poeta cerebral tomou café sem açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
                 que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
                    o efeito respeitoso que produz
                                 seu trato com o dicionário.
Faz três horas já que estuma as musas".

Ao mencionar a pedra, não tenho qualquer dúvida de que o "ataque" fora dirigido a João Cabral de Melo Neto. Em diversas oportunidades, Prado defendeu a noção de inspiração num sentido não muito diferente daquele do senso comum: uma espécie de "sopro criador" - sobrenatural até - que acomete o sujeito e leva-o a escrever. Ela opõe-se ao poeta cerebral (Melo Neto não acreditava em inspiração) - pelo menos no sentido em que cerebral é empregado no poema mencionado logo acima (no cerebral, supostamente, não caberia a emoção). Como vimos anteriormente, ela acredita que a poesia deriva de um dom, uma graça. Ela não tem mérito algum na feitura dos poemas.

Entretanto, na entrevista ao programa Roda Viva citada acima, a escritora diz:

"[...] O poema vem cheio de gordura, de sangue, de tudo quanto há, eivado das coisas que aquela emoção está produzindo, mas isso não é arte ainda. É uma coisa bruta. Aí você escreve [ou seja, livra-se da "gordura" e do "sangue"].

Ora, essa "depuração", essa "limpeza" realizada pela poeta no momento da escrita é, indubitavelmente, pensada, muito provavelmente motivada por determinada intencionalidade.

É bem possível que a autora não concordasse com o que acabei de escrever. Noutra entrevista ao mesmo programa Roda Viva, desta vez em 1994 (transcrição disponível aqui), perguntou-se a Prado se ela achava que o intencional é ruim. Sua resposta:

"Em arte, sim; o intencional é na filosofia. Eu faço um ensaio, eu argumento, eu faço uma tese, maravilhoso, adoro ler ensaios. Mas é outro espaço, é outra categoria. A arte não vem da razão, ela não vem da lógica, ela vem do espírito".

Pessoalmente, acho isso pouco palatável. Claro que poesia e filosofia - para ficar no exemplo dado pela escritora - são instâncias discursivas distintas. Mas dizer que a arte provém apenas do "espírito" e não passa pela mediação do pensamento não me parece corresponder à realidade do trabalho literário. Quando uma escritora como Adélia Prado fala em tirar a "gordura" e o "sangue" com os quais os poemas, segundo ela, vêm ao mundo, outra coisa não faz do que afirmar a ação intencional, pensada (logo cerebral, a seu modo) do poeta. Certamente não com a mesma obstinação arquitetônica de João Cabral de Melo Neto, mas ainda assim... Gosto sempre de lembrar daquela passagem memorável do Itinerário de Pasárgada, de Manuel Bandeira :

"Mas ao mesmo tempo compreendi [quando tomou consciência de que seria um "poeta menor"], ainda antes de conhecer a lição de Mallarmé, que em literatura a poesia está nas palavras, se faz com as palavras e não com ideias e sentimentos, muito embora, bem entendido, seja pela força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia".

Ou seja, a inspiração - seja ela um "sopro criador", uma "graça", um forte sentimento ou uma ideia obsedante - tem lá sua relevância, mas o poeta é antes de mais nada um artista das palavras. E ao resolver combiná-las, associá-las, organizá-las de um jeito - e não de outro - o faz de forma deliberada, refletida. Do contrário, bastaria, para fazer poemas, que alguém dotado de uma espécie de mediunidade literária mantivesse contato com a poesia e psicografasse o que lhe fora ditado...

. . . . . . . 

Desnecessário dizer que, apesar da consagração e da relativa popularidade, Adélia Prado não é unanimidade. Ainda assim acho importante colocá-la no posto de a grande poeta brasileira viva.

Essa "entronização" talvez seja equivocada, artificial ou simplesmente fátua.

Acho, porém, que ela tem pelo menos uma valia: fornece um bom alvo, bem delimitado, no qual outros(as) poetas podem "abrir fogo" (lembram-se do caso do Campos Lara lá no início da postagem?). Respeitosamente, claro.

Ao atentar para atitude, as formas prediletas, os "cacoetes literários", o feitio de certos textos, a filosofia que subjaz a obra de grandes poetas (e Adélia Prado, não tenho dúvida, está entre estes) - mesmo que seja para escarnecer e zombar (como talvez façam muitos de seus "concorrentes") - é uma forma de aprendizado, até para o exercício da própria escrita. E, embora compreendendo que muitos consideram isso meio forçado e antiquado, penso que nada é melhor para prestarmos atenção na obra de grandes artistas do que colocá-los num pedestal - mesmo que venhamos a desancá-los depois.

. . . . . . .

A postagem, mais uma vez, ficou imensa. E mesmo assim deixei de abordar dois temas que havia prometido tratar hoje: o ato de ler poesia atualmente, além de enumerar algumas considerações sobre poesia contemporânea. Vai ficar para depois.

Contudo, não posso, antes do encerramento, deixar de comentar algo que me incomoda muito em Adélia Prado. Não em sua obra, mas em alguns de seus posicionamentos como figura pública que é.

Sendo tão aferradamente católica, é de se esperar que a escritora adote uma visão de mundo conservadora. Até aí, tudo bem. Porém, a meu ver, Prado, nalguns pontos, chega a ser reacionária. Basta conferir algumas de suas observações nas entrevistas que citei ao longo desta série e o(a) eventual leitor(a) verá que não estou exagerando. Ficarei apenas em três exemplos.

Na entrevista ao jornal O Globo, numa pergunta sobre aborto, a escritora diz que o princípio do "meu corpo, minhas regras" - caro ao feminismo - não passa de "uma empáfia, militância, cunha para extrair variadas vantagens".

Na sua segunda participação no Roda Viva, em 2014, afirmou que "vivíamos numa ditadura, não numa democracia",  declaração sem respaldo na realidade, mas que ia ao encontro do interesse da produção do programa, que, como se sabe, opunha-se ferozmente ao governo da ex-presidente eleita Dilma Rousseff. Não custa lembrar que a TV Cultura, responsável pelo Roda Viva, é administrada pelo governo de São Paulo, nas mãos do PSDB há décadas. O mesmo Roda Viva organizou aquela vergonhosa entrevista com Michel Temer, da qual só participaram jornalistas "brandos" com o político - para dizer o mínimo - e na qual Ricardo Noblat fez aquela patética - e já antológica - pergunta sobre como Temer conhecera a esposa, Marcela. É difícil imaginar que uma pessoa com a inteligência de Adélia Prado não soubesse que estava sendo usada para espicaçar uma adversária dos controladores da emissora em ano de eleição.

E, por fim, a poeta já afirmou que o ato criativo pertence ao masculino e que "o papel do feminino é o papel do segundo lugar, é o do segundo, é o do serviço, do anonimato mais perfeito", como se pode encontrar na sua primeira participação no Roda Viva. Confesso que tenho dificuldade para compreender isso.

Faço essas observações para lembrar (como já fiz antes aqui no blog ao escrever sobre Monteiro Lobato, Lima Barreto e Ferreira Gullar) que não se deve idealizar demais os(as) grandes artistas, mesmo aqueles(as) a quem admiramos.

__________
¹ LESSA, Orígenes. O feijão e o sonho. São Paulo: Ática, 1983

² Há poucos anos tentei encetar uma série de postagens aqui no Besta Quadrada - intitulada Poesia: questão de tudo ou nada - justamente para discutir, entre outros temas, a poesia contemporânea. Acabei não concluindo a série. Talvez retome-a um dia. Ou, a partir dos mesmos temas, opte por escrever algo diferente. Vou pensar.

³ PRADO, Adélia. Poesia reunida. São Paulo: Siciliano, 1991 (todos os poemas e excertos citados nesta postagem provieram dessa reunião da obra da poeta)

⁴ OLIVIERI, Rita. Poesia e oralidade na obra de Adélia Prado. Sitientibus, Feira de Santana, n. 13, p. 121-126, jul-dez. 1995. Disponível em <http://www2.uefs.br/sitientibus/pdf/13/poesia_e_oralidade_na_obra_de_adelia_prado.pdf>. Acesso em 25/06/2017

⁵ O ensaio Móbile para Adélia, de Augusto Massi, serve de posfácio para a última edição da Poesia reunida de Prado, publicada em 2015, agora pela editora Record.

⁶ BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. In: ________. Seleta de Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 295-360

BG de Hoje

Devo admitir que nunca tinha ouvido falar em ELLEN OLÉRIA até poucos meses atrás, quando a vi no comando do (ótimo) programa Estação Plural, da TV Brasil. Soube depois que ela foi vencedora numa atração musical da Rede Globo. Fui ouvir então algumas de suas apresentações. Chapei na hora! Espetacular! Confira na faixa Testando, composição da própria artista brasiliense.