quarta-feira, 10 de maio de 2017

Tem sempre alguma coisa chegando ao fim em Pó de parede



No finalzinho do ano passado, li um texto de Carol Bensimon (Sombras literárias), publicado no blog da Companhia das Letras, no qual a autora critica o excesso de reverência que muitos parecem ter pela literatura - qualquer literatura.

"São pessoas que, em eventos literários", escreve ela, "vão sugerir que os estudantes passem a ler autores locais nas escolas, não colocando sequer em questão o sentido de ler no Ensino Médio sonetos de amor horrorosos, a cópia da cópia da cópia da cópia made in Arroio dos Ausentes. É como se a Literatura, essa grande arte que nos ilumina e nos torna pessoas melhores, nunca pudesse ser Literatura Ruim. Sim, existe literatura-ruim, como existe literatura-que-não-é-pra-mim, como também existe literatura-que-não-é-pra-mim-nesse-momento-da-vida, etc. Não há nada de mau em aceitar isso. Gosto. Momentos. Livros que não são tão bons assim. Livros que não são tão bons assim mesmo que falem de minorias com a melhor das intenções. Livros com ideias ótimas, mas cujo estilo pode não me agradar, etc."

Às vezes não se consegue - ou não se quer - perceber o óbvio (o fato de que existe literatura-ruim, por exemplo) e a escritora gaúcha faz bem em nos lembrar disso. Ela prossegue observando que talvez não se trate propriamente de reverência, mas sim de "um envolvimento tão profundo na concretude de coisas como sistema literário e fomento à leitura de maneira que os livros em si, a arte, acabam sendo jogados para segundo plano", levando a uma série de comprometimentos (inclusive pedagógicos) cujos efeitos são, no mínimo, questionáveis.

Assim Bensimon conclui sua postagem:

"O que eu quero dizer é que, quando a qualidade literária desaparece como critério e é substituída por coisas tão diversas como compadrio (pequenos sistemas literários que só existem porque uma mão lava a outra), fomento à literatura a qualquer custo (chamando alunos de burros se aquilo não lhes desperta nada), polícia do politicamente correto (que já barrou Lolita em algumas universidades americanas), a Literatura está sendo vergonhosamente desrespeitada. Ainda que as pessoas achem que a amam. Ainda que as pessoas achem que fazem aquilo pelo bem dela".

Não sei se existe alguma querela (ia escrever "treta", essa palavra horrível) da escritora com algum dos "pequenos sistemas literários" a que se refere e não me agrada a expressão "polícia do politicamente correto", mas, em linhas gerais, concordo com sua crítica.

Como já disse, Sombras literárias chegou a meu conhecimento no ano passado, assim como outros escritos da autora disponíveis no mesmo blog (sugiro também Míseros 25 livros). Entretanto, ainda não havia lido nenhum de seus trabalhos ficcionais. Isso até duas semanas atrás, quando finalmente resolvi tirar da estante o seu livro de estreia, Pó de parede ¹.

E, claro, não se trata de um caso de literatura-ruim.

O livro é composto por três contos (ou "novelinhas", nas palavras da própria Carol Bensimon). Comecemos pela última narrativa, Capitão Capivara. Alternam-se dois narradores: uma aspirante à escritora, "atrás de uma juventude de privações e experiências um tanto quanto originais para beatnik nenhum botar defeito", e um profissional já experimentado, que vem seguidamente entrando na lista dos mais vendidos porque é um "corrompido", como ele se autoavalia. Ambos estão no mesmo hotel: ela trabalhando numa atividade desagradável e bastante ridícula, por vontade própria, embora a família tenha "um bom dum dinheiro"; ele, hóspede, curtindo dor de corno e tentando escrever um vergonhoso livro de encomenda. Há nessa história um personagem secundário que merece ser destacado: o Gerente do hotel, "uma péssima pessoa" (consequência do excesso de leitura sobre marketing, segundo a narradora), inteiramente ajustado à subserviência de sua função em relação aos hóspedes, como se pode notar pelo seu papo:

"Você pode rir, mas é verdade [que uma invenção dele "agrega valor" à marca do hotel] , e já fizemos algumas pesquisas a respeito, porque hoje em dia quem escolhe um tipo de hotel do padrão do nosso não está somente atrás de um quarto confortável, ou de uma piscina, ou de um café da manhã de alta qualidade, mas quer que o hotel tome para si a responsabilidade do fim de semana mágico que a família está esperando, não é mesmo? Nós é que temos que nos desdobrar por inteiro pela felicidade dos outros, que vão ficar sentados esperando a vida acontecer, porque eles pagaram e é assim que tudo funciona hoje em dia, ahn".

(Se bem que... ele não deixa de ter razão com relação às expectativas dos endinheirados mundo afora...)

A segunda história, Falta céu, passa-se numa cidadezinha onde "em volta era só pássaro e peixe, o cansaço de não acontecer nada". Um empreendimento imobiliário de luxo muda o ambiente. A narrativa nos chega principalmente por meio da personagem Lina. Difícil não nos afeiçoarmos a ela. A descrição de seu primeiro beijo é um dos grandes momentos do conto: "Estava tão atenta ao bem fazer, cuidando de todo o detalhe dela ou dele, o que produzia o que, o que acontecia se, que era como se estivesse queimando uma formiga com uma lente de aumento ou abrindo um sapo com um bisturi na aula de ciências".

Mas é A caixa o conto/novela que mais se sobressai no conjunto. Acompanhamos o que acontece com Tomás, Laura e - principalmente - Alice em quatro passagens de tempo. Alice, uma garota "quieta, desconfiada, um pouco precoce na tristeza", vive numa casa arquitetonicamente arrojada e incomum, num bairro classe média. Em 1991, aos 11 anos, gosta de "histórias de detetive e de música barulhenta", não está entre as mais populares da escola, mas ainda não se sente "disposta a fundar o clube dos anormais" (do qual Tomás provavelmente poderia ser um membro). Filha de epígonos do ideário hippie, a menina experimenta a "estranheza" de sua família e o desejo de aceitação por seus pares, típico de todo adolescente. A partir de uma "reunião dançante" (que expressão engraçada!) na casa de Laura, a mais rica do bairro, e do avultamento da figura do arquiteto Kowalski, a história adquire outras nuanças.

Ao terminar Pó de parede fiquei com a sensação de que as três histórias, cada uma a seu modo, estão dizendo ao leitor que as coisas sempre chegam ao fim, esgarçam-se. E é bom ir logo se acostumando com isso. É o hotel de Capitão Capivara que se recusa a aceitar sua decadência e anacronismo; a mata sendo derrubada para a construção de um falso refúgio bucólico para ricaços em Falta céu, bem como o fim da tranquilidade para Dona Celestina e os velhos que jogavam dominó na venda de beira de estrada; o fim que ameaça chegar para a alegria infantil de Titi, a irmã mais nova de Lina. Aliás, esse fim da infância marca vários momentos de A caixa, em que também podemos sentir o fim chegando para as utopias dos pais de Alice e dos amigos deles, todos cercados por "uma nuvem tóxica de saudosismo".

Não sei dizer se essas "advertências" do fim foram completamente intencionais por parte de Bensimon. De todo modo, capto-as nessas três ótimas narrativas (sobretudo A caixa), o que torna toda a leitura muito mais atrativa, pelo menos pra mim.

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¹ BENSIMON, Carol. Pó de parede. 2 ed. Porto Alegre: Não Editora, 2010

BG de Hoje

Já que a cena grunge é citada numa das narrativas de Carol Bensimon (e o NIRVANA, especificamente), encerro hoje com uma música da banda de Aberdeen, Sliver. Essa composição foi gravada antes do ultrafamoso Nevermind, mas só ficou conhecida do grande público um tempo depois. No vídeo abaixo, o bebê que aparece nele é Francis Bean Cobain, a filha de Kurt e, se você reparar, verá que Dave Grohl nem sequer encosta as baquetas na bateria (há um pouco de ironia nisso e também um pouco de respeito a Dan Peters, que foi o músico que tocou na gravação original).