quinta-feira, 18 de maio de 2017

Coragem, covardia e onde andará Janair? (I)


"Às vezes - às vezes nós mesmos manifestamos o inexpressivo - em arte se faz isso, em amor de corpo também - manifestar o inexpressivo é criar".

"[...] pois quando a arte é boa é porque tocou no inexpressivo, a pior arte é a expressiva [...]"

G. H., em A paixão segundo G. H. - Clarice Lispector


Numa crônica pequenininha ¹, nascida a partir da observação de um quadro de Paul Klee intitulado Paysage aux oiseaux jaunes, Clarice Lispector escreveu uma de suas frases mais bonitas (atenção aqueles que adoram espalhar sentenças da escritora - verdadeiras ou inventadas - nas mídias sociais): "Coragem e covardia são um jogo que se joga a cada instante". E ela prossegue:

"Assusta a visão talvez irremediável e que talvez seja a da liberdade. O hábito de olhar através das grades da prisão, o conforto de segurar com as duas mãos as barras, enquanto olho. A prisão é a segurança, as barras o apoio para as mãos. Então reconheço que a liberdade é só para muito poucos. De novo coragem e covardia se jogaram: minha coragem, inteiramente possível, me amedronta. Pois sei que minha coragem é possível. Começo então a pensar que entre os loucos há os que não são loucos. É que a possibilidade, que é verdadeiramente realizada, não é para ser entendida. E à medida que a pessoa quiser explicar, ela estará perdendo a coragem, ela já estará pedindo; Paysage aux oiseaux jaunes não pede. Pelo menos calculo o que seria a liberdade, e é isso o que torna intolerável a segurança das grades; o conforto desta prisão me bate na cara. Tudo o que eu tenho aguentado – só para não ser livre..."

A obra de arte citada - como seu próprio título diz - compõe-se simplesmente de pássaros amarelos distribuídos num cenário expressionista, com outras formas coloridas, num fundo preto (seria a noite?). Lispector diz que o quadro não pede. Não pede o quê? Entendimento, tanto na acepção rigorosa, kantiana mesmo, de conceituação e juízos intelectivos, quanto no sentido de compreensão, mais calcada na empatia e na percepção da intencionalidade da ação ou do objeto que se construiu. Não é que o entendimento e a compreensão sejam interditados ao espectador da pintura; apenas não são requisitados para a apreciação da obra. Sob esse aspecto, o pintor é livre: nada pede ao outro.

Não se trata aqui de referendar o chavão "arte é para ser sentida, não entendida" - que, no fim das contas, serviu durante um tempo apenas para mascarar o elitismo e o desejo de sentir-se superior por parte daquele que o proclamava. Trata-se, na verdade, de refletir sobre as possibilidades da expressão artística. Olha-se para um quadro e tem-se a impressão de que este nos exibe a liberdade, a liberdade do próprio pintor, a liberdade do seu criar. Mas quem está a olhar a pintura - também ela uma artista - julga fazê-lo de dentro de uma prisão, prisão que, arrisco dizer (e creio não estar equivocado) é a da linguagem literária convencional.

Não sei quando essa pequena crônica foi escrita (talvez tenha sido entre 1946 e 1951, quando Clarice Lispector morou na Suíça, em Berna, cidade que fica muito próxima a Münchenbuchseen, onde nascera Paul Klee). O texto, entretanto, só veio a público em 1964, no livro A legião estrangeira. Fora incluído na segunda parte, chamada "fundo de gaveta (por sugestão de Otto Lara Resende), pois reunia fragmentos de composições, escritos diversos, antigos e mais recentes, muitos destes não destinados a uma página de livro, pelo menos não inicialmente. Na nota que acompanhava aquela primeira edição, a escritora justifica-se:

"[...] Por que publicar o que não presta? Porque o que presta também não presta. Além do mais, o que obviamente não presta sempre me interessou muito. Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem graça no chão".

Até o início da década de 1950, Lispector havia lançado Perto do coração selvagem, O lustre e A cidade sitiada, além de contos esparsos. Seu romance de estreia já sinalizava todo o impacto que sua escrita causaria na literatura brasileira, mas os dois seguintes não foram tão inovadores assim - estaria a escritora presa na segurança das formas narrativas assentes?

Em 1960, aparece o extraordinário Laços de família; em 1961, A maçã no escuro; e em 1964, além de A legião estrangeira, sai também A paixão segundo G. H. Todos esses títulos, junto com A hora da estrela (publicado em 1977, ano de falecimento da autora), são reputados como as grandes obras de Lispector, os pontos altos de sua estilística, sobretudo Laços de família e A paixão segundo G. H. Pode-se dizer que a partir dessa década, a autora deixa definitivamente "a segurança das grades" - ou seja, abandona de vez qualquer convencionalismo e não tem mais receio de buscar novas e particulares formas de expressão literária/artística. Mesmo que muitos destes textos tenham começado a ser escritos em anos anteriores (alguns, como certos contos, já tendo inclusive vindo a público), após Laços de família, Clarice Lispector parece-nos convicta de que "sua coragem [era] possível". E isso me parece ser o tema preponderante do romance A paixão segundo G. H.

Logo na terceira página desse livro inigualável, a narradora diz: "Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir". A liberdade, tema existencialista constante na obra de Lispector, refere-se também à liberdade criadora do(a) artista. Numa das "conversas" com o impreciso interlocutor que G. H. instala em sua narração (engenhoso recurso da escritora), lemos:

"- Sei, é ruim segurar minha mão. É ruim ficar sem ar nessa mina desabada para onde eu te trouxe sem piedade por ti, mas por piedade de mim. Mas juro que te tirarei ainda vivo daqui - nem que eu minta, nem que eu minta o que meus olhos viram. Eu te salvarei deste terror onde, por enquanto, eu te preciso. Que piedade agora por ti, a quem me agarrei. Deste-me inocentemente a mão, e porque eu a segurava é que tive coragem de me afundar. Mas não procures entender-me, faz-me apenas companhia. Sei que tua mão me largaria, se soubesse".

E nós, leitores, não largamos sua mão e aceitamos ficar dento da "mina desabada" até o fim da narrativa. Entramos nela pelo quarto da empregada, que a narradora pensava "estar imundo, na sua dupla função de dormida e depósito de trapos, malas velhas, jornais antigos, papeis de embrulho e barbantes inúteis". Mas não é isso o que encontra. Janair, a empregada recém-despedida, mantivera o quarto limpo.

Aliás, todas às vezes em que releio A paixão segundo G. H. não consigo deixar de ficar pensando nessa personagem, Janair. A narradora acreditava que era odiada por ela. Qual o motivo? Janair deixara um desenho na parede. O que quis dizer com ele? (Nesse ponto, não confio na interpretação da narradora).

Creio que vale a pena falar de Janair. E também um pouco mais sobre o jogo da coragem e da covardia encenado no livro. Deixarei para a próxima semana, contudo.

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¹ LISPECTOR, Clarice. Paul Klee. In:_________. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 17. Embora esse texto, como disse acima, fora publicado originalmente na primeira edição de A legião estrangeira, a partir de 1978, se não me engano, passou a fazer parte de um outro volume, este Para não esquecer..

² LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998

BG de Hoje

Nunca MICHAEL JACKSON cantou tão lindamente quanto na gravação de One day in your life. É fabuloso, de chorar.