sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Livro: entre o poder simbólico e a obsolescência (III)


[Atenção: o texto abaixo é o terceiro de uma discussão 
iniciada aqui (1ª parte) e que teve prosseguimento aqui (2ª parte)]

Na primeira postagem desta série, deixei no ar algumas perguntas. E uma delas foi: o fim do livro - se é que isto vai acontecer num futuro imediato - deixará um certo tipo de leitor (como este blogueiro) desamparado? 

Eu pensava, ao formular esse questionamento, no livro como suporte material (possivelmente o mais tradicional deles) para os textos elaborados pelas mentes humanas. Leitores inteligentes, entretanto, sabem que o mais importante numa obra é o seu conteúdo (suas ideias e formulações conceituais e, no caso da Literatura, também sua estilística). Buscamos num texto, antes de tudo, o seu lado, digamos, "espiritual" e não nos importa que a sua - ainda me valendo da mesma representação - forma "corpórea" esteja materializada num rolo de papiro, num codex de pergaminho, numa brochura de papel ou na tela de um notebook. Noutras palavras, o livro é só um objeto, um instrumento.

Mas lá do fundo da minha cabeça vem uma voz rouquenha, com um sotaque fora de moda (se percebe no seu tom) que me diz: "Absolutamente! Não é um objeto!". O livro impresso - o nosso tão familiar livro de papel - deveria erigir-se do terreno mundano das mercadorias (ele próprio uma mercadoria obsoleta, diriam muitos por aí) e atingir as alturas do sublime, digno de veneração.

Pronto: eis a armadilha do fetichismo:

É então que me lembro do conceito marxista. Num arguto ensaio* (ao qual retornarei mais adiante) o antropólogo Igor Kopytoff considera que:

"Para Marx, o valor das mercadorias é determinado pelas relações sociais ocorridas na sua produção; mas a existência do sistema de troca faz com que o processo produtivo se transforme em algo remoto e mal entendido, e ele 'mascara' o valor real da mercadoria [...] Isso permite que a mercadoria seja socialmente dotada de um 'poder' de fetiche que não se liga ao seu valor real".

E esse "poder" acaba conferindo a determinadas coisas - neste caso, livros - um verniz de prestígio ainda bastante reluzente nos dias atuais, quando todos admitem a trivial condição delas como produtos comercializáveis.

O fetichismo em torno desse objeto remete-me ao ensaio Do fim da cultura ao fim do livro, de Sérgio Paulo Rouanet** (já mencionado aqui). Segundo o ensaísta, "todos nós, intelectuais, vivemos dos livros e para os livros" e "como se isso não bastasse, somos incorrigíveis fetichistas, fascinados pelos livros enquanto objetos, e não somente enquanto depositários de ideias e informações". Sendo "filhos da 'galáxia de Gutenberg' ", teríamos restrições em "aceitar facilmente a passagem para outra galáxia". Nossa inadaptação às mudanças provocadas pelo atual cenário tecnológico pode explicar muitas das alegações a respeito do fim do livro. E, se "levado às últimas consequências, esse comportamento é, certamente, irracional", adverte Rouanet. Os novos suportes e recursos informacionais são uma realidade incontestável e, à sua maneira, disseminam conhecimento como nenhum outro instrumento o fez até hoje.

O que estamos vivenciando hoje, talvez, seja "uma crise da cultura da qual a crise do livro seria, senão um epifenômeno, pelo menos um sintoma", pensa Sérgio Paulo Rouanet. O autor considera que

"As pessoas não leem, não por serem analfabetas, mas por serem vítimas do fenômeno social do 'iletrismo', ou seja, a recusa de ler, mesmo quando elas dominam a técnica da leitura. É nisso, fundamentalmente, que a globalização é trágica, não por dissolver identidades, mas por 'planetarizar' a massificação, carregando os detritos culturais até os confins do universo e, assim, destruindo a curiosidade intelectual sem a qual deixa de existir o prazer da leitura".

Para o ensaísta, o ser humano contemporâneo, globalizado,

"foi condicionado para deixar de ler, passando por uma pedagogia da não-leitura; não lê porque a leitura exige esforço, enquanto a mídia lhe oferece uma satisfação instantânea [...] não lê porque passa por uma aprendizagem regressiva que faz com que regrida do estágio do pensamento conceitual, sem o qual nenhuma leitura é possível, para o estágio do pensamento por imagens, efêmeras por natureza, sem vínculos entre si, e que nada podem fazer além de refletir um mundo igualmente desconexo - por essa razão, ininteligível - e, por consequência, não transformável. É evidente que o contrário é, igualmente, verdadeiro: por não ler, o homem não aprende a pensar segundo os princípios da causalidade, do ponto de vista histórico e político".

O livro, símbolo do pensamento conceitual e da capacidade de olhar o mundo de uma perspectiva histórica e política, é considerado obsoleto na atualidade, possivelmente não pela materialidade de que é feito, mas pela função sociocultural que exerce.

Continuo na próxima postagem.
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* KOPYTOFF, Igor. A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo. In: APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Editora da UFF, 2010. p. 89-121 [Tradução de José Augusto Drummond]

** ROUANET, Sérgio Paulo. Do fim da cultura ao fim do livro. In: PORTELLA, Eduardo (Org.). Reflexões sobre os caminhos do livro. São Paulo: Moderna, 2003. p. 57-77

BG de Hoje

Cada vez que noto alguém ouvindo música-porcaria, me pergunto: porque fechar a sua mente com tanta má qualidade? É tão mais fácil hoje encontrar bons artistas espalhados por esse mundão... Como, por exemplo, a cantora e compositora franco-nigeriana ASA (pronuncia-se 'ASHA'). A canção chama-se Jailer.