quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Livro: entre o poder simbólico e a obsolescência (II)


(Esta postagem dá continuidade ao texto anteriormente publicado aqui)

Há uma passagem de Quincas Borba* da qual sempre me lembro quando o assunto é o livro, na sua condição material de objeto. Rubião, protagonista desse extraordinário romance de Machado de Assis, acaba de saber que o filósofo amalucado para quem trabalhou o nomeara "herdeiro universal". E passa a imaginar os bens legados:

"E quanto seria tudo? ia ele pensando. Casas, apólices, ações, escravos, roupa, louça, alguns quadros, que ele teria na Corte, porque era homem de muito gosto, tratava de cousas de arte com grande saber. E livros? devia ter muitos livros, citava muitos deles".

No rol dos itens acima, dois deles prendem minha atenção.

Parte da herança de Rubião era composta por escravos. Nunca, nunca mesmo, podemos esquecer que um enorme segmento da população brasileira foi, durante séculos, considerado mercadoria, sem direitos de qualquer natureza, sem cidadania. A história e a trajetória sociocultural do país foram profundamente marcadas por esse flagelo. Nunca nos esqueçamos disso.

O outro item a ser destacado são os livros, para os quais o personagem olha apenas com interesse venal, pois, no decorrer da narrativa, revelar-se-á um tremendo ignorante, não desejando aprimorar-se por meio da leitura. E parece espantoso para nós, viventes do século XXI, que o livro um dia possa ter sido tão valioso - tomado, exclusivamente, como bem material - a ponto de ser um item relevante das heranças.

Hoje os livros são um produto relativamente barato**. Mas nem sempre foram. Steven Roger Fischer, na sua ótima História da leitura***, assevera que

"A partir do final do século XII, os livros - ou seja, códices em pergaminho escritos à mão, muitos deles, no norte da Europa, consistindo em pele de bezerros - passaram a ser lucrativos artigos comerciais. [...] Os que emprestavam dinheiro, reconhecendo o valor comercial dos livros, chegavam a aceitá-los como garantia; em particular, os estudantes tinham os costume de tomar dinheiro emprestado mediante o valor de um volume estimado. No século XV, as importantes feiras em Frankfurt e Nördlingen, na Alemanha, passavam também a comercializar livros".

O alto preço desse objeto se devia, principalmente, ao custo da mão-de-obra (aqui no sentido literal, pois os livros eram todos manuscritos) e ao material utilizado. Wilson Martins, em seu precioso e enciclopédico trabalho A palavra escrita****, observa que "as informações [registradas ao longo da história] sobre o preço do pergaminho, embora dificilmente avaliável em moeda atual, demonstram que era elevadíssimo em comparação com outros bens de consumo".

A invenção da prensa e da tipografia, além do surgimento do papel, foram fatores que diminuíram o preço do produto, mas não tanto assim. Não havia condições sociais e econômicas para o estabelecimento de um grande contingente de consumidores. "Ainda bastante raros" - anota Steven Roger Fischer - "os livros eram quase tão valorizados na Renascença quanto na Idade Média, sendo seu roubo muitas vezes punido com a pena de morte por se tratar de artigos equiparados a bens como cavalos e gado".

Livros só se tornarão mercadorias acessíveis às diversas classes sociais a partir da primeira metade do século XIX, com a produção em escala industrial e o surgimento de um autêntico mercado editorial, possibilitado pela escolarização em massa.
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Ainda que, na atualidade, os livros sejam encontrados em centenas de milhões de lares mundo afora, não consigo deixar de me encafifar.

Duvido que eu faça parte de uma sociedade leitora, em seu sentido pleno, e não só meramente alfabetizada.

Não acredito, de modo algum, que a maioria das pessoas com quem convivo valorize os livros, não como objetos em si, mas naquilo que eles simbolizam como nenhum outro artefato humano conseguiria sê-lo: fontes essenciais para o aprimoramento de nossa cognição.

Continuo na próxima postagem.

* ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Garnier, 1998

** Quero deixar bem claro que NÃO sou daqueles indivíduos que ficam papagueando: "Livros são caros! Livros são caros!". Noutra oportunidade, escreverei sobre isso.

*** FISCHER, Steven Roger. História da leitura. São Paulo: UNESP, 2006 [Tradução de Claudia Freire]

**** MARTINS, Wilson. A palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca. 3 ed. rev. e ampl. São Paulo: Ática, 2002

BG de Hoje

Houve uma época (ah, como o tempo voa!...) que os TITÃS formavam uma excelente banda de rock. Õ Blésq Blom, disco lançado em 1989, representa, na minha opinião, o ápice criativo daqueles caras. E Flores é a canção que melhor demonstra isso. Começa pelo riff de guitarra simples, rascante e inesquecível de Tony Belloto, depois a linha de baixo bem harmônica, tocada por Nando Reis, e o coroamento nos solos de sax executados pelo Paulo Miklos. Um musicaço!