terça-feira, 17 de novembro de 2015

Negritude, um retrato da juventude africana e a mitologia iouruba em quadrinhos

Nesta semana, as postagens do blog serão alusivas ao Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro). Como faz tempo que não escrevo sobre quadrinhos, aproveito logo para destacar hoje três obras do gênero.
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Muita gente já disse que os estrangeiros em geral conseguem perceber os problemas raciais do Brasil de forma mais realista, sem o "filtro rosa" com o qual diversos brasileiros - por má fé, ignorância ou mesmo ingenuidade - preferem olhar para a questão*. É algo a se verificar. Mas posso dizer, sem dúvida, que no caso de Negrinha (Editora Desiderata, 2009), elaborado pelos franceses Jean-Christophe Camus e Olivier Tallec, os artistas conseguiram dar ao tema o tratamento apropriado, sem falsas amenidades.

A história se passa em 1953, no Rio de Janeiro. Maria é uma adolescente negra, de pela mais clara e cabelos lisos (dentro do peculiar colorismo da sociedade brasileira, talvez até poderia ser vista como branca). Dona Olinda, sua mãe, é negra de pele escura e trabalha como empregada doméstica. Dona Olinda saiu do morro do Cantagalo para que a filha vivesse no "asfalto" e, segundo Carmen, tia da menina,

"fez de tudo pra não faltar nada pra você [Maria], pra você ser criada em um bairro de rico, estudar em um bom colégio. Tudo o que ela fez foi pra você ter uma vida melhor do que a dela... Melhor do que a nossa... Você é descendente de escravos, meu amor, e apesar de a escravidão ter sido abolida 65 anos atrás [em relação à epoca em que a história em quadrinhos se desenrola], pode acreditar, é melhor ser branco do que ser preto... A menos que você seja músico ou jogador de futebol..."

Negrinha expõe muitas das facetas do racismo que caracteriza nosso país, como a subalternidade dos postos de trabalho aos quais a maioria das pessoas negras é confinada, ou a brutalidade policial e a violência oriunda do crime, cujas vítimas, em seu maior número, são pessoas negras. A escrita de Jean-Christophe Camus flui com simplicidade, sem, no entanto, render-se às simplificações. E os desenhos de Olivier Tallec, aquarelados, fornecem a delicadeza necessária à matéria narrada.

Enfim, um trabalho de primeira.

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Aya de Yopougon (Editora L & PM, 2012) tem como protagonista uma jovem de 19 anos, cujo principal objetivo é ser médica. Vive com as amigas num bairro popular de Abidjan, a maior cidade da Costa do Marfim (e que foi capital do país na época em que a história se passa - finalzinho dos anos 1970).

Escrita por Marguerite Abouet e ilustrada por Clément Oubrerie, Aya de Yopougon tem bom ritmo e diversos momentos cômicos, o que não impede a narrativa de incorporar tópicos tais como o machismo, a gravidez não planejada e a desigualdade social.

É pena que somente as duas primeiras partes dessa obra foram publicadas no Brasil (originalmente, são seis). Ah, e vale também dizer que a história foi adaptada, com sucesso, para o cinema de animação, num desenho de longa-metragem lançado em 2013.

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Orixás: do Orum ao Ayê (Editora Marco Zero, 2011), ainda que tenha seus méritos, infelizmente não é tão boa quanto as duas obras já destacadas. Sua proposta gráfica é a das publicações standard norte-americanas sobre super-heróis. Tudo é muito bem desenhado, com acabamento bem feito, mas carece um pouco de originalidade. Faltou também um pouco de ação (falha que já havia detectado noutra adaptação de narrativas mitológicas - naquele caso, judaico-cristãs - e que discuti noutra ocasião anterior).

De todo modo, trata-se de um bom título para servir de introdução (sobretudo para as crianças e para os adolescentes) a uma parte integrante essencial do patrimônio cultural ioruba (ou yorubá, como queiram), tão relacionado com a cultura afro-brasileira. A esse respeito, a propósito, também vale a pena conhecer Os príncipes do destino: histórias da mitologia afro-brasileira, de Reginaldo Prandi, e o ótimo Ogum, o rei de muitas faces e outras histórias dos orixás, escrito por Lídia Chaib e Elizabeth Rodrigues. NOTA: Estes dois últimos títulos citados não são HQs.

Na próxima postagem, falo do poeta Adão Ventura.

* Gilberto Gil - que assina o prefácio de Negrinha - prefere dizer que a história ilustra à miscigenação brasileira e não menciona em nenhum momento o termo racismo (que é, como já disse, brilhantemente tematizado pelos autores franceses nessa obra). Claro que Gil não se esquivou da questão da desigualdade racial ao longo de sua carreira (e seu extraordinário cancioneiro comprova isso), mas é perceptível que até mesmo ele - e desconheço os motivos - não se sentiu à vontade para trazer esse tópico à baila ao apresentar o livro ao público brasileiro.

BG de Hoje

Acho que já disse, noutra oportunidade, que considero CHICO CÉSAR um letrista sensacional. Isso fica comprovado, por exemplo, desde o título desta canção: Respeitem meus cabelos, brancos. Com apenas uma vírgula, transforma o que era um simples adjetivo da conhecida expressão popular em um vocativo que define claramente para quem vai o recado dado na canção. Ah, e é claro, tenho que mencionar o ritmo contagiante dessa faixa.