terça-feira, 19 de novembro de 2013

"Gracilianas" (IIIb) - Angústia


"Trancado num quarto, sapecando as pestanas em cima de um livro, como sou vaidoso e como sou besta! Caminhei tanto; e o que fiz foi mastigar papel impresso. Idiota".

Luis da Silva, personagem-narrador de Angústia - Graciliano Ramos

 
No ensaio O pobre diabo no romance brasileiro* (citado na postagem anterior), José Paulo Paes, entre outros expedientes, vale-se do clássico estudo A teoria do romance, de Georg Lukács, para analisar "o mais humilde dos papéis ficcionais", qual seja, o pobre diabo, tal como o Luis da Silva, de Angústia**.

Em seu trabalho, Lukács considera que o "herói problemático" surge nos romances modernos e estes podem ser divididos em duas categorias: o romance de formação, típico do período romântico, no qual há um herói disposto a modificar a realidade social, levando em conta seus íntimos ideais; e o romance da desilusão, que conta com um herói (ou melhor, anti-herói) descrente de qualquer ideal, acomodado ao status quo e imerso nas suas frustrações particulares.

Para Paes, "é fácil ver que o romance de pobre diabo está tão longe das esperanças, ainda que utópicas, do romance de formação, quanto perto está da desesperança do romance da desilusão. Melhor dizendo: representa a forma mais externada, mais radical deste último".

Luis da Silva é, em dúvida, um desiludido. É também um sujeito mesquinho e rancoroso. Um dos personagens de nossa Literatura com quem mais me identifiquei até hoje. Acerto de contas do escritor consigo mesmo? É possível defender tal interpretação. Prefiro, contudo, considerar o anti-herói de Angústia como um "monstro revoltado" - lançando mão da expressão usada por Otto Maria Carpeaux. Mas não é um monstro revolucionário (a despeito das convicções políticas do escritor à época), uma vez que, resignado, atola-se no conformismo.

. . . . . . .

Antes de encerrar, gostaria de destacar outro ponto que me interessa muito em Angústia: o desencanto com que a relação amorosa é tratada; melhor dizendo, no modo como se narra o encontro homem-mulher. Note, por exemplo, a lembrança residual do envolvimento do narrador com Marina:

"De todo aquele romance as particularidades que melhor guardei na memória foram os montes de cisco, a água empapando a terra, o cheiro dos monturos, urubus nos galhos da mangueira farejando ratos em decomposição".

Esse desencanto tornar-se-á mais explícito no encontro do protagonista com uma prostituta pobre e doente. Após pagar uma refeição simples para a mulher, Luis a acompanha até um "quartinho sujo". Fica sabendo que ela está "na vida" há quatro anos: "Quatro anos. E ali estava aquela carcaça comida pelo treponema. Panos caídos no chão, o irrigador com permanganato. Na mesinha de cabeceira, essências ordinárias disfarçavam um cheiro forte de esperma".

Os dois não fazem sexo, mas ao ir embora, Luis entrega dez mil-réis à prostituta, que recusa. Ele então diz:

"Não me faça cometer um desatino. A senhora é relógio para trabalhar de graça? A senhora tem obrigação de andar nua diante de mim? Duas horas de chateação, de conversa mole! A senhora é relógio? A senhora não é relógio".

Dignidade vale dez mil réis? Dignidade vale quanto?

Dias depois, descobre que "a mulher da Rua da Lama, a que eu encontrara uma noite no Helvética, andava caipora, no hospital, com doença do mundo".

Angústia é um livro de desalento. Estranhamente, contudo, sempre saio dele mais fortalecido, a cada nova leitura.

Na próxima postagem, falarei do São Bernardo.
__________
* PAES, José Paulo. O pobre diabo no romance brasileiro. In: ________. A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 39-61

** RAMOS, Graciliano. Angústia. 32 ed. Rio de Janeiro: Record, 1986


BG de Hoje

Esta foi a primeira canção que ouvi do METALLICA, há bastante tempo, na casa de um ex-colega de escola: Fade To Black. A cada dia percebo que gosto muito das músicas desesperadas...