sexta-feira, 8 de novembro de 2013

"Gracilianas" (II) - Infância



Infância foi publicado pela primeira vez em 1945. Nessa época, Graciliano Ramos já se tornara um escritor experiente, cioso de seu ofício. Arrisco dizer que Infância revela tanta qualidade expressiva, um artesanato (sem ornamentação, porém) tão apurado no uso da palavra escrita e na construção da frase que, nesse aspecto, iguala-se e até supera, nalguns momentos, Vidas Secas. Basta ler certos capítulos, como Um cinturão, por exemplo, e verificar*:

"As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural".


E também nessa descrição do livro escolar detestado (O Barão de Macaúbas):

"Um grosso volume escuro, cartonagem severa. Nas folhas delgadas, incontáveis, as letras fervilhavam, miúdas, e as ilustrações avultavam num papel brilhante como rasto de lesma ou catarro seco".


Mas o que me atrai mesmo nesse livro extraordinário é o modo como o narrador encara "os tempos de criança". E estes foram doloridos. Marcados pelo medo. Tristes. NOTA 1: Há uma tendência, mais ou menos generalizada mundo afora: olhar para a infância com uma nostalgia carinhosa e idílica ("bons tempos aqueles" ou "eu era feliz e não sabia"). Não há vestígio disso em Graciliano Ramos. Em determinada passagem, o narrador diz ter chegado a si "retalhos de felicidade". Essa sensação, contudo, é elemento escasso na narrativa.

Quais capítulos destacaria? O moleque José, no qual o narrador nos descreve sua vontade de executar, ainda que timidamente, um ato de crueldade; Leitura, sobre sua penosa experiência inicial de alfabetização; e A criança infeliz, que pode ser lido até como um conto autônomo. NOTA 2: O valor que atribuo a Infância não me impede, todavia, de rejeitar a maneira negativa e ofensiva como o escritor geralmente retrata pessoas negras dentro do livro.

No capítulo Um intervalo, o narrador nos fala de um momento de convivência com as filhas de Seu Nuno, moças que tinham a capacidade, segundo ele, de "afirmar o contrário do que desejavam". Elogiavam o "paletó cor de macaco" usado pelo menino, mas, no fundo, zombavam dele: "dissimulavam-se agora num jogo de palavras que encerrava malícia e bondade". O acontecido marcou Graciliano Ramos, que assim termina o capítulo:

"Guardei a lição, conservei longos anos esse paletó. Conformado, avaliei o forro, as dobras e os pospontos das minhas ações cor de macaco. Paciência, tinham de ser assim. Ainda hoje, se fingem tolerar-me um romance, observo-lhe cuidadoso as mangas, as costuras, e vejo-o como ele é realmente: chinfrim e cor de macaco".

A dureza autoavaliativa sempre acompanhou o escritor.

Na próxima semana, falarei do meu livro preferido dentro da obra de Graciliano Ramos: Angústia.
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* RAMOS, Graciliano. Infância. 22 ed. Rio de Janeiro: Record, 1986

BG de Hoje

Outro produto artístico que mira a infância com tristeza (horror, pra ser mais exato): a canção Jeremy, do primeiro disco do PEARL JAM.