sexta-feira, 22 de novembro de 2013

"A contenteza do triste"


Escreveria hoje sobre o romance São Bernardo, mas deixarei para semana que vem.

É que ontem foi impossível dormir. Minha saúde não está das melhores e o calor ultrapassou o limite do suportável. Não conseguia ler duas páginas seguidas de qualquer livro. Decidi então ouvir música e o primeiro CD escolhido foi o Voadeira, da Mônica Salmaso. Já o escutei dezenas de vezes, mas não sei por qual motivo, quando a sexta faixa terminou, senti-me invadido por uma sensação contrária ao mal-estar que me dominava. Tratava-se de Béradêro, canção composta por Chico César, presente também no disco de estréia do cantor e compositor paraibano (Aos vivos, 1995). Reproduzo, abaixo, a letra na íntegra:

"Os olhos tristes da fita
Rodando no gravador
Uma moça cosendo roupa
Com a linha do Equador
E a voz da santa dizendo:
O que é que eu tô fazendo
Cá em cima desse andor

A tinta pinta o asfalto
Enfeita a alma motorista
É cor na cor da cidade
Batom no lábio nortista
O olhar vê tons tão sudestes
E o beijo que vós me nordestes
Arranha céu da boca paulista

Cadeiras elétricas da baiana
sentença que o turista cheire
E os sem amor, os sem teto
Os sem paixão, sem alqueire
No peito dos sem peito uma seta
E a cigana analfabeta
Lendo a mão de Paulo Freire

A contenteza do triste
Tristezura do contente
Vozes de faca cortando
Como o riso da serpente
São sons de sim, não contudo
Pé quebrado, verso mudo
Grito no hospital da gente"

Uma junção de imagens literárias belíssimas ("Pé quebrado, verso mudo/Grito no hospital da gente"), jogos de palavras inesperados ("O olhar vê tons tão sudestes/E o beijo que vós me nordestes/Arranha céu da boca paulista"). Que belíssimo poema!

Pensei, enquanto ouvia a música (e penso nisso frequentemente): ah, se não fosse a atividade artística, como a nossa vida seria ainda mais ordinária e desagradável. 

Durante este dia (e como está sendo difícil levá-lo adiante), ficarei cantarolando essa canção, atrás da "contenteza do triste"

Na próxima semana, prometo trabalhar mais e retornarei a Graciliano Ramos.

BG de Hoje

Claro, só podia ser a interpretação de MÔNICA SALMASO para Beradêro.