quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Tradições também podem ser estúpidas



Quem leu Abril despedaçado, de Ismail Kadaré* (ou viu a ótima adaptação cinematográfica desse livro realizada por Walter Salles e lançada em 2001) sabe que o protagonista fez o que fez - assassinou outro indivíduo - e está destinado a um fim lamentavelmente parecido por viver numa comunidade que segue um rígido código normativo, fixado pela tradição há muito tempo.

O protagonista do romance, Gjorg Berisha, não vê como se libertar "daqueles cânones":

"Seria inútil se enganar. O Kanun [o código a ser seguido] era mais poderoso do que parecia. Estendia-se por toda a parte, deslizava pelas terras, pelas bordas dos campos lavrados, penetrava nos alicerces das casas, nos túmulos, nas igrejas, ruas, feiras, festas de noivado, erguia-se até os cumes alpinos, talvez ainda mais alto, até o próprio céu, de onde caía em forma de chuva para encher os cursos de água [...]"

O rapaz pensa em escapar de tudo aquilo (talvez fugindo), mas não reúne a coragem suficiente. Olha as construções a seu redor e vê que "para tudo aquilo existiam regras multisseculares. Não havia como escapar delas". E se pergunta:

"Como tinham sido criadas normas tão completas e imperiosas? Por quem? Quando? Ninguém sabia dizer ao certo. Alguns evocavam antigos príncipes, outros teimavam que elas eram anteriores aos principados".

Ainda assim, mesmo sabendo-se condenado à morte por causa das regras do código, Gjorg sentia por dentro algo "a um só tempo belo e terrível". A tragédia de seu clã não o fazia mais tranquilo, mas, por outro lado, nas outras famílias isentas da "dívida de sangue", não percebia "nenhum indício especial de felicidade". Kadaré, habilmente, incute a dúvida na cabeça do personagem sobre qual espécie de vida preferir - a trágica ou a trivial - evitando fazer dele um "coitadinho".

A história paralela, contada no livro, envolvendo o escritor Bessian Vorps e sua esposa Diana (embora uma intercessão dessa trajetória com a de Gjorg Berisha acabará por acontecer no decorrer da narrativa), não é do interesse desta postagem. Contudo, durante a viagem do casal ao Rrafsh - a região do norte da Albânia submetida ao código do Kanun - Vorps faz um comentário que gostaria de destacar. Comparando as sucessivas vinganças previstas pelo código a grandes obras literárias, diz ele:


"E leve em conta que Hamlet foi incitado a matar por um motivo forte. Ao passo que ele [Gjorg Berisha, com quem tinham se cruzado casualmente] [...]  a máquina que o pôs em movimento é alheia a ele, às vezes alheia até ao tempo em que ele vive".


Todos nós - com maior ou menor intensidade - vamos sendo impelidos pela "máquina" das tradições que nos cercam. Entretanto, devo dizer que tenho certa antipatia pelos tradicionalismos porque, junto com o apego à tradição, vem o hábito (conservador) de não colocá-la em questão. E quando os usos  e respostas tradicionais revelam-se absurdos, ao invés de discuti-los (e, se for o caso, deixá-los de lado), muitos simplesmente declaram: "tradição é tradição: temos que obedecer". Que estupidez !

Claro que o romance trágico escrito por Ismail Kadaré tem muitos outros elementos e aspectos a serem ressaltados (e, obviamente, estou sugerindo à(ao) eventual leitor(a) que procure esse livro), mas sempre que me lembro dessa narrativa é para me espantar com o apego tantas vezes injustificado das pessoas pela tradição, seja no sertão nordestino ou nas montanhas albanesas.

* KADARÉ, Ismail. Abril despedaçado. São Paulo. Companhia das Letras, 2007 [Tradução de Bernardo Jofilly] 

BG de Hoje

Num tempo em que amigos têm me faltado, gosto de lembrar dessa canção do GONZAGUINHA, que costumo cantarolar bastante: Recado.