terça-feira, 17 de setembro de 2013

Quem está imune à indústria cultural? (II)



No ensaio A canção de consumo (incluído em Apocalípticos e integrados*, livro de que estamos tratando nesta série de postagens), Umberto Eco irá criticar a chamada música "gastronômica" - que seria aquela destinada, supostamente, apenas para servir como entretenimento, evasão, jogo e consolo. Vale esclarecer que o texto em questão serviu de prefácio para outro livro (de outros autores), publicado em 1964, no qual a indústria musical - no contexto italiano - era um dos temas abordados. Apesar dessas circunstâncias, os pontos ali levantados não destoam do atual cenário da cultura de massa, inclusive no Brasil. A propósito, antes de prosseguir, é bom deixar claro que ao falar de massa, o pensador italiano (e, junto com ele, também este blogueiro) não "tira o corpo fora", como se fosse um ser não-contaminado, culturalmente puro: a massa, "em muitos momentos do dia, cada um de nós é, sem exceção", escreve ele.

Umberto Eco considera que a canção de consumo "segue uma lógica das fórmulas "; um produto feito de acordo com a lei fundamental do mercado - oferta e procura. Se determinada fórmula dá certo (vende), será repetida enquanto for rentável:

"[...] onde a fórmula substitui a forma só se alcança êxito decalcando os parâmetros [estabelecidos pelos produtos musicais anteriores] e uma das características do produto de consumo é que ele nos diverte não por revelar-nos algo de novo, mas por repetir-nos o que já sabíamos, o que esperávamos ansiosamente ouvir repetir e que é a única coisa que nos diverte..."

A música de consumo - doravante, vou designá-la de música pop** - não tende à experimentação. E isso vale tanto para o rock (gênero de preferência deste blogueiro), quanto para o (pomposamente) chamado samba "de raiz" ou a axé music.

Assim sendo, o que pode ser feito para que a música pop ganhe relevância (e valoração) artística? Uma solução é delineada naquilo que Umberto Eco chama de "canção 'diferente' " (o próprio autor coloca o adjetivo entre aspas em seu ensaio). Em que consiste essa nova forma de fazer música? Pra começar, opor-se às canções gastronômicas,

"[...] não procurando atenazar  a atenção do ouvinte mediante o fascínio de um ritmo primitivo, mas sim através da presença envolvente de conceitos e apelos inusitados. O resultado foi o de fornecer uma canção que a pessoa se concentra para escutar. Habitualmente, a canção de consumo é usada como fundo musical enquanto se faz outra coisa ; a canção 'diferente' requer respeito e interesse".

Se fosse para pensar num exemplo dentro do atual universo musical brasileiro, diria que a canção "diferente" vem daqueles artistas que vinculam seu trabalho ao cânone da MPB (de forma reverente ou iconoclasta, não importa agora), ao passo que a música gastronômica seria representada pelo sertanejo universitário e pelo "pancadão" carioca.

O ensaio A música de consumo é curto, mas suscita discussões longas. Por isso retornarei a ele na próxima (e última) postagem desta série.

* ECO, Umberto. A canção de consumo. In: _______. Apocalípticos e integrados. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 295-314 [Tradução de Pérola de Carvalho]

** ver nota de rodapé da postagem anterior da série

BG de Hoje

Direto ao ponto: MAURÍCIO TIZUMBA, Canção pra tocar no rádio.