segunda-feira, 4 de março de 2013

Moralismo econômico, Macunaíma, "ficar à toa" e outros assuntos (III)




Finalmente começo a falar de Macunaíma. Já não era sem tempo.

Assisti certa vez a um programa produzido para a TV Escola, da série Mestres da Literatura (disponível no Youtube, caros colegas da educação básica), em que o poeta Frederico Barbosa (atualmente diretor do Museu da Língua Portuguesa, acho eu) defendia a leitura do livro de Mário de Andrade não por ser este um clássico brasileiro, por ser "importante" e blá-blá-blá, mas simplesmente porque é engraçadíssimo e nos faz dar muitas gargalhadas. Falo por mim: é impressionante como até hoje, tendo lido e relido tantas vezes o Macunaíma*,  me pego rindo distraída e prazerosamente. E olha que a obra, baseada em estudos históricos e etnográficos nada superficiais, é de uma ambição tremenda - retratar, por meio da Literatura, os principais aspectos do que nos faz ser brasileiros.

O trecho mais divertido de toda a narrativa, penso, é o capítulo XI, "A velha Ceiuci". Todo ele é vertiginoso: Macunaíma acorda meio adoentado e "muito gangento com o sucesso do discurso da véspera" (no qual proclamara que ' Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são '). Decide matar o tempo procurando vestígios de animais silvestres em plena capital paulista, engana (pra variar) os irmãos, passa a perna também na população, tenta se vingar de seu arqui-inimigo, Venceslau Pietro Pietra, dizendo palavrões. Finalmente, acaba capturado pela velha Ceiuci, é ajudado pela filha dela a escapar mas acaba sendo perseguido, de norte a sul Brasil adentro, pela megera.

Quero destacar, contudo um pequeno trecho, quando Macunaíma diz ter encontrado "rasto fresco de tapir bem na frente da Bolsa de Mercadorias". O herói sai procurando, acompanhado pelos irmãos, e mais "aquele mundão de gente comerciantes revendedores baixistas matarazos". Obviamente ninguém acha nada. O "mundão de gente" se zanga. Um repórter chega a reclamar:

" - Isso não vai assim não! Pois então a gente vive trabucando pra ganhar o pão-nosso e vai um indivíduo tira a gente o dia inteiro do trabalho só pra campear rasto de tapir!"

Um estudante (provavelmente de Direito, um dos cursos preferidos da elite brasileira), aproveita a vaza e enceta um discurso, cheio de indignação hipócrita (é difícil não achar graça na sátira apresentada):

" - Meus senhores, a vida dum grande centro urbano como São Paulo já obriga a uma intensidade tal de trabalho que não permite-se mais dentro da magnífica entrosagem do seu progresso siquer a passagem momentânea de seres inócuos. Ergamo-nos todos uma voce contra os miasmas deletérios que conspurcam o nosso organismo social e já que o governo cerra os olhos e dilapida os cofres da nação, sejamos nós mesmos os justiçadores..."

O que se segue é cena digna de um filme-pastelão dos bons. Mas o que extrair dessas observações iniciais sobre Macunaíma?

Arrisco dizer que o herói sem nenhum caráter intentava, no fundo, dar à cidade (e à vida nacional) uma alternativa melhor para que a luta entre "os filhos da mandioca" (ou seja, os moradores do centro urbano) e a "Máquina" (a materialidade oriunda da industrialização que permeia a vida desses moradores) não terminasse empatada, como ele observara no capítulo V ("Piaimã"). E essa alternativa bate de frente com o moralismo econômico contra o qual me coloco.

Continuo, espero, na quinta-feira.


* ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Círculo do Livro, 1983. [ Fiz questão de citar essa edição (cuja capa ilustra a postagem) porque me lembra a iniciativa de meu falecido irmão, sócio do Círculo do Livro, e que, direta e indiretamente, contribuiu para minha formação como leitor. Guardo. até hoje, essa edição comigo.]

BG de Hoje

Fui salvo do pop açucarado graças ao VAN HALEN. Explico. Quando eu era garoto só escutava aquelas canções que hoje chamaríamos de música-de-tiozinho. Isso até eu ouvir a banda de Pasadena, Califórnia. Abriu-me as portas para o rock pesado. No vídeo, Ain't talkin 'bout love, do primeiro disco (1978).