terça-feira, 28 de agosto de 2012

A escrita atordoante de Kafka: a "energia sem retorno"





A filósofa Hannah Arendt, num de seus livros *, valeu-se de uma narrativa de Franz Kafka para ilustrar metaforicamente o posicionamento dos seres humanos em meio à "disputa de forças" entre o passado e o futuro. Sobre o escritor ela diz:

"Não se decifrou ainda o enigma de Kafka [...] que consiste, basicamente, em uma espécie de espantosa inversão da relação estabelecida entre experiência e pensamento. Ao passo que consideramos como imediatamente evidente associar riqueza de detalhes e ação dramática à experiência de uma dada realidade, atribuindo assim certa palidez abstrata aos processos mentais como tributo a ser pago por sua ordem e precisão, Kafka, graças à pura força de inteligência e imaginação espiritual, criou a partir de um mínimo de experiência despojado e 'abstrato', uma espécie de paisagem-pensamento que, sem perda de precisão, abriga todas as características da vida 'real' . Sendo o pensar para ele a parte mais vital e vívida da realidade, desenvolveu esse fantástico dom antecipatório que ainda hoje [...] não cessa de nos atordar". 

Atordoamento. Sem dúvida, essa é a sensação quando leio qualquer escrito de Kafka.

Noutra perspectiva, Maurice Blanchot  (citado por John Lechte**) afirma: "por isso que só compreendemos [a obra de Kafka] ao traí-la; nossa leitura gira ansiosamente ao redor de um mal-entendido".

Como, então, interpretar a obra desse autor?

Há, em seus contos e romances, um componente alegórico - o que motiva muitos leitores a tentar buscar sentidos ocultos, a mensagem por trás do texto. Mas esse esforço não nos levaria apenas a "girar ansiosamente ao redor de um mal-entendido" ?  Além disso, por não ser referir diretamente a nenhuma extensão espaço-temporal imediatamente reconhecível na vida "real", a maioria dos escritos de Kafka não nos deixa confortável dentro da "paisagem-pensamento"  por ele criada.

Essa obra atordoante é também um testemunho sobre o ofício do escritor a partir do início do século passado. Como observou John Lechte:

"No caso de Kafka, isso acarreta a consagração de sua experiência interior mais íntima. Essa consagração, ou o tornar-se literário da escrita, arma uma profunda tensão. Pois depois que o escritor armou seu jogo, queimou suas pontes, colocou seu próprio ser em risco e montou o cenário de seu desafio às mais profundas convenções da arte de sua época, ele pode não ser reconhecido; tudo pode ter sido em vão. A possibilidade do fracasso mais profundo tem de ser considerada. As apostas foram muito altas, e a tentação de se comprometer é extremamente forte".

De fato, em vida, o escritor não conheceu nenhuma popularidade e mesmo depois que o amigo Max Brod contrariou o pedido recebido e publicou os manuscritos inéditos, Franz Kafka é provavelmente um autor mais comentado pelos  estudiosos  do que efetivamente lido pelo público leitor  em geral   (exceção, talvez, d' A metamorfose, bastante difundido). Daí Lechte falar em "energia sem retorno" : energia gasta pelo escritor mas que não retorna a ele na forma de recepção popular, e, ao mesmo tempo, energia gasta pelo leitor que não tem garantia de retorno na forma de compreensão do texto proposto pelo autor.

. . . . . . .

Para concluir nossa discussão, falemos de uma narrativa kafkiana conhecida: Na colônia penal*** (que considero uma angustiante história de horror).

São quatro personagens : um oficial, um explorador-visitante, um soldado e um condenado. A meu ver, o texto - pensando nos componentes alegóricos dos escritos de Kafka - tematiza a ritualização da violência, exercida metodicamente pelas autoridades (o oficial, na narrativa, parece não perceber o quão é injusto e brutal o uso do aparelho de tortura e morte mantido por ele na aplicação das punições e parece também não se dar conta do sadismo inerente à contemplação do sofrimento alheio).

Atentemos para este trecho, em que o oficial explica ao explorador o funcionamento da máquina de tortura e execução:

" [...] o objetivo não é matar de imediato, mas em média num intervalo de doze horas ; a transição está calculada para a sexta-hora. Muitos, muitos floreios rodeiam a escrita ; a escrita propriamente dita envolve o corpo apenas em um filete estreito ; todo o resto do corpo fica reservado aos ornamentos. Será que agora o senhor será capaz de apreciar o trabalho do rastelo e de todo o aparelho?"

A escrita refere-se à ação dos componentes do aparelho, que desenham e escrevem no corpo do condenado a sentença proferida contra ele. Essa violência ritualizada e metódica acabará por vitimar a todos - é o que a novela nos indica. Tratar-se-ia da "banalização do mal"  (citando um conceito discutido, aliás, por Hannah Arendt)?

Os enigmas de Kafka ainda não foram decifrados

. . . . . . .

Para ampliar a compreensão da obra de Franz Kafka sugiro também a leitura de História: onde empatia e distanciamento se encontram (parte 1) e História: onde... (parte 2), publicados no blog da professora Rachel Nunes (um dos recomendados aqui da casa)

* ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 7 ed. São Paulo: Perspectiva: 2011 [ tradução de Mauro W. Barbosa ]

** LECHTE, John. Franz Kafka. In: ________. Cinquenta pensadores contemporâneos essenciais: do estruturalismo à pós-modernidade. 4 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006. p. 268-272 [ tradução de Fábio Fernandes ]

*** KAFKA, Franz. Na colônia penal. In: _____________.Um artista da fome seguido de Na colônia Penal e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 77-124 [ tradução de Guilherme da Silva Braga ]

 
BG de Hoje

Já que falei em horror, preste atenção a estes versos: " Modulistic terror/ a vast sadistic feast/ the only way to exit/ is going piece by piece" [tradução aproximada: "Terror modulístico ( ? )/ um vasto banquete sádico/ o único modo de sair/ será pedaço por pedaço "]. É a primeira estrofe de Piece by piece, faixa do disco Reign in Blood (1986) do SLAYER, grupo seminal para o trash metal. Justificando o nome da banda, Piece by piece   é uma espécie de recado macabro dado por um serial killer. No fundo, a letra é uma bobagem que pretende causar espanto e repulsa. Hoje, acho apenas divertido. Mas tinha tudo a ver com o espírito adolescente existente em mim naquela época. De todo modo, ainda curto o som do SLAYER.