quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Abaixo da superfície do que gostaríamos de ser

"Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa, sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto".

Do conto Verde lagarto amarelo, de Lygia Fagundes Telles

 
 
Final de ano é sempre a mesma coisa: reuniõezinhas de confraternização no trabalho, amigo-secreto (ou oculto, como se diz aqui em BH) com o pessoal da faculdade, almoços e jantares em família, aos quais comparece, maciçamente, a parentada, etc. E com nossa vida irreversivelmente determinada pela economia - além de uma pesada "contribuição" da publicidade - caímos de boca, com gula. Brindamos, sorrimos, dançamos: parece comercial de shopping center ou mensagem de final de ano da Globo, só que mal ensaiada.

Abaixo da superfície do que gostaríamos de ser, entretanto...

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Há sempre um jogo em todo diálogo: do debate mais sofisticado com especialistas de uma determinada área do conhecimento, à mais banal e insossa série de perguntas e respostas que empreendemos, por exemplo, quando solicitamos algum serviço ou produto pelo telefone.

Em Verde lagarto amarelo*, Lygia Fagundes Telles compõe um desses jogos ao narrar o encontro de dois irmãos, Rodolfo e Eduardo. Há uma disputa, o reavivamento de um antigo conflito, ainda que não seja explicitamente assumido. Às vezes, os jogadores nem precisam verbalizar. A escritora nos exibe as estratégias dos personagens pela maneira como estes se colocam em cena, através do que nos diz o narrador, Rodolfo.

Mágoas renitentes, demonstrações de afeto negadas, lembranças de injustiças: tudo ameaça vir à tona, como o suor que tanto incomoda o narrador: "Era menino ainda mas houve um dia em que quis morrer para não transpirar mais". A presença do irmão evoca recordações desagradáveis:

"E me trazia a infância, será que ele não vê que para mim foi só sofrimento? Por que não me deixa em paz, por quê? Por que tem que vir aqui e ficar me espetando, não quero lembrar de nada, não quero saber de nada!"

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Rodolfo olha para dentro de si ao mesmo tempo em que sente o "suor de bicho venenoso, traiçoeiro, malsão". O retrato de Eduardo é completamente diferente: "era bonito, inteligente, amado, conseguia sempre fazer tudo muito melhor [...], muito melhor do que os outros, em suas mãos as menores coisas adquiriam outra importância".

É curioso: a esmagadora maioria das pessoas não se vê como um réptil nojento. Mas é nessa época do ano que as minhas (e acho que também as suas) viscosidades deletérias e mais recônditas escorrem em abundância, maculando a superfície do que gostaríamos de ser.

Melhor tomar uns porres.
 
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* TELLES, Lygia Fagundes. Verde lagarto amarelo. In: ___________. Antes do baile verde. Rio de Janeiro: Rocco, 1989

RECESSO

Este blog - e este blogueiro - entram em recesso. A página  voltará a ser atualizada no dia 17/01/2011. Ao(à) leitor(a) habitual e ao(à) visitante acidental, boas festas e até a volta.

BG de Hoje

Sempre se espera que nalguma esquina da vida a nossa sorte mude. Mesmo os mais pessimistas têm essa sensação de vez em quando. O RADIOHEAD talvez seja o grupo de rock mais deprê das últimas décadas (e também um dos mais apurados, é necessário acrescentar). Em Lucky, Thom Yorke arrisca: "I feel my luck could change"... o ano que vem... Será?

OBS: o clipe é triste, triste...