terça-feira, 16 de novembro de 2010

A idealizada imunidade dos escritores (2)


Antes de tratar, propriamente, do tema central desta postagem (continuação da anterior) gostaria de emitir uma opinião que parecerá exagerada - e é bem possível que seja - mas ao menos nascida de minha razoável experiência trabalhando em bibliotecas escolares de diferentes unidades: hoje em dia, efetivamente, Monteiro Lobato é muito pouco lido.

As crianças e adolescentes costumam evitá-lo por causa do número de páginas dos exemplares, tidos como extensos por pessoas - infelizmente - cada vez mais desabituadas a textos robustos. Há ainda a questão da linguagem (mais ampla do que a questão da língua, é bom que se diga): o "público-alvo" na década de 1930 (ou seja, a criança daquela época) difere muito do atual, inclusive no modo como se relaciona com textos escritos.

Até leitores adultos, a quem supostamente caberia a tarefa de mediação da obra de Lobato (bibliotecários, professores, educadores em geral), têm pouca ou nenhuma familiaridade com o autor. Isso é uma pena: considero A chave do tamanho, por exemplo, um dos livros infantis mais importantes do mundo, e a boneca de pano por ele inventada (e que depois vira gente) é um dos personagens mais extraordinários de toda a nossa Literatura, voltada ou não para crianças (ainda que seja, para dizer o mínimo, figurinha controversa, como veremos adiante...)

Ocorre o seguinte: a Turma do Sítio do Picapau Amarelo independe, hoje, dos livros em que estava contida; é uma marca poderosa, com existência autônoma em relação ao texto escrito originalmente.

Fica, portanto, a pulga atrás da orelha: será que o melindre estridente por parte da imprensa, em torno do parecer do CNE até aqui discutido (ver postagem anterior), não teria partido de indivíduos que não leem (ou não leram) efetivamente os livros do escritor e acabaram emitindo suas opiniões ancorados apenas numa imagem idealizada do trabalho literário de Monteiro Lobato, imagem esta agora associada a uma marca forte no campo dos produtos para a infância?

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Marisa Lajolo, conceituada estudiosa da obra do autor de Caçadas de Pedrinho, abre o artigo A figura do negro em Monteiro Lobato* - também disponível aqui - declarando por que análises como esta são necessárias:

"Discutir a representação do negro na obra de Monteiro Lobato, além de contribuir para um conhecimento maior deste grande escritor brasileiro, pode renovar os olhares com que se olham os sempre delicados laços que enlaçam literatura e sociedade, história e literatura, literatura e política e similares binômios que tentam dar conta do que na página literária, fica entre seu aquém e seu além.
Além do texto, aquém da vida".

Pode-se perfeitamente ler Literatura privilegiando apenas (ou principalmente) aspectos formais e/ou estéticos; entretanto, este não é o tipo de leitura que procuro fazer. Só para exemplificação, cito o caso de dois escritores: Henry Miller e Nelson Rodrigues; aprecio o primeiro, não gosto do segundo. O universo desencantado e "desglamourizado" no qual transitam as personagens de Henry Miller é, para mim, sempre interessante. Contudo, encontro frequentemente trechos de conteúdo antissemita (segundo minha avaliação) em seus livros. Já nas crônicas e peças de Nelson Rodrigues vejo (de novo, na minha avaliação) o quanto era reacionário o dramaturgo, não obstante seus aforismos terem se tornado famosos, pois Rodrigues foi, antes de tudo, um competente frasista. Tanto num quanto noutro, o texto às vezes sai perdendo para a vida. Mas voltemos ao artigo de Marisa Lajolo.

A professora da Unicamp fala em "ambiguidade" - este blogueiro chamaria simplesmente de racismo - na obra de Lobato com relação à representação que se faz do negro. Destaca, em sua análise, o livro Histórias de Tia Nastácia**, no qual podemos ler trechos como este:

" - Pois cá comigo - disse Emília [sempre ela!] - só aturo essas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e bárbaras - coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto e não gosto..."

No entanto, Marisa Lajolo acredita que, para observar como se dá essa, segundo ela, ambiguidade de representação, é preciso ir além da "denúncia bem intencionada dos xingamentos de Emília", observando, por exemplo, a assimetria existente entre Tia Nastácia e os outros personagens da Turma do Sítio. Escreve a articulista:

"Sem idealizações e sem meias palavras, os leitores das Histórias de Tia Nastácia são voyeurs de uma situação na qual os ouvintes das mesmas histórias, sem complacência e sem papas na língua, desqualificam as matrizes populares de onde vêm as histórias que ouvem".

O que se vê é um "rebaixamento cultural" do mundo representado por Tia Nastácia, já que este mundo é incompatível com a visão de modernidade típica dos anos 1930, defendida por Lobato e outros intelectuais da época. E discutindo o modo como os outros personagens recebiam as narrativas apresentadas pela "negra de estimação" (assim apresentada em Reinações de Narizinho, lembremos), Lajolo demonstra como essa visão de modernidade age sobre o leitor (inclusive o contemporâneo):

"Ao ir lendo, a reação dos ouvintes às histórias que Tia Nastácia vai contando, o leitor de Lobato sente-se tentado a tomar partido. E só por estar lendo, são muito pequenas as chances de que sua solidariedade vá para a preta velha que desfia histórias por quem, na melhor das hipóteses e como os pica-pauzinhos [Emília, Narizinho e Pedrinho], ele (leitor) nutre sentimentos de afeto, mas que, nem por serem autênticos, deixam de ser uma das expressões que o racismo assume na cultura brasileira. O livro sublinha a inadequação das histórias a seu auditório na voz dos próprios ouvintes: são eles que estabelecem a diferença que afasta a tradição letrada e moderna que, erigindo-se em referente, confirma à marginalidade a produção cultural que não venha desse mundo urbano e moderno".

Teria mais a dizer sobre esse assunto, inclusive a respeito do projeto de Lobato intitulado O presidente negro, mas deixo para outra oportunidade, poupando o generoso e paciente leitor que me acompanhou até o fim desta postagem em duas partes.
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* LAJOLO, Marisa. A figura do negro em Monteiro Lobato. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v.4. n.23, p. 21-31, set/out. 1998

** LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. 9 ed. São Paulo: Brasiliense, 1970 [ilustrações de Manoel Victor Filho] [volume 4 (série A) das Obras Infantis Completas]

BG de Hoje

Sou fã de André Abujamra e do KARNAK. E gosto muito da canção Espinho na roseira/Drumonda. Quando procurei no Youtube, achei este vídeo tosco e engraçado.