quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A idealizada imunidade dos escritores (1)


No mês de setembro, um parecer do CNE (Conselho Nacional de Educação) - disponível aqui - provocou polêmica, gerando matérias em alguns veículos da imprensa. Mas vamos ao começo da história.

O parecer (aprovado por unanimidade pelo Conselho e aguardando homologação) é resultante de consulta encaminhada por um técnico da Secretaria de Educação do Distrito Federal a diversos órgãos administrativos. Antônio Gomes Costa Neto solicitava que a Secretaria na qual trabalha e as unidades subordinadas a esta não deveriam "utilizar livros, material didático ou qualquer forma de expressão que, em tese, contenha expressões de prática de racismo cultural, institucional ou individual". Citava especificamente o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, que, segundo o técnico, manifestava conteúdo racista.

De acordo com a relatora do parecer sobre o caso, Nilma Lino Gomes, professora da Faculdade de Educação da UFMG, "[...] a denúncia do Sr. Antônio Gomes Costa Neto deve ser considerada coerente". Para a conselheira do CNE,

"Não se pode desconsiderar todo um conjunto de estudos e análises sobre a representação do negro na literatura infantil [...], os quais vêm apontando como as obras literárias e seus autores são produtos do seu próprio tempo e, dessa forma, podem apresentar, por meio da narrativa, das personagens e das ilustrações, representações e ideologias que, se não forem trabalhadas de maneira crítica pela escola e pelas políticas públicas, acabam por reforçar lugares de subalternização do negro".

Nilma Lino Gomes observa que "a ficção não se constrói em um espaço social vazio". E recomenda algumas ações a serem empregadas para evitar atitudes reprodutoras do racismo no ambiente escolar, entre elas, fazer com que a Coordenação-Geral de Material Didático do MEC (uma vez que Caçadas de Pedrinho integra o acervo do PNBE*) exija "da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura".

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Há quem tenha interpretado o parecer (não é meu caso) como uma tentativa de proibir a circulação do livro de Monteiro Lobato. Além disso, o caso faz emergir outros pontos que merecem ser discutidos: a desconfiança que se tem sobre o preparo dos professores para lidar com situações complexas e que vão além da prática pedagógica rotineira; o papel das bibliotecas escolares - setor particularmente afetado por decisões internas e externas referentes a permissão ou restrição de acesso a determinados livros; ou mesmo um suposto patrulhamento motivado pelo chamado politicamente correto.

Uma questão, entretanto, pareceu-me passar batida, apesar de toda a celeuma em torno do assunto: a maneira como enxergamos os escritores, sobretudo aqueles consagrados e/ou considerados canônicos, como Lobato. Com frequência, achamos que os escritores, por serem artistas conceituados - indivíduos geniais, em alguns casos - deveriam merecer análises de sua obra baseadas apenas em critérios estéticos. Possuiriam eles uma espécie de "imunidade artística". Tal posicionamento indica, a meu ver, uma idealização (ingênua, como não poderia deixar de ser) da relação escritor-obra.

Devemos lembrar, penso eu, que a capacidade criadora de um escritor não está isenta da influência de fatores sociais e históricos que condicionam a existência de qualquer indivíduo. E é possível criticar seu trabalho incorporando ao exercício analítico a observação desses fatores, indo além da Teoria da Literatura e da Estética. Escritores são meros mortais (apesar da ABL afirmar o contrário sobre um seleto grupo, do qual, aliás, Monteiro Lobato foi excluído).

Marisa Lajolo, em um ensaio excepcional sobre o escritor paulista** - disponível aqui - (e que foi citado pela conselheira Nilma Lino Gomes no parecer em discussão) realiza um desses estudos mais abrangentes a que me referi; falo a seu respeito na próxima postagem.
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* PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola) - Ação do MEC, através do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, responsável pela distribuição periódica de livros e outras publicações destinadas a alunos e professores das escolas públicas, executada desde 1997, incrementando bibliotecas escolares e salas de leitura.

** LAJOLO, Marisa. A figura do negro em Monteiro Lobato. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 4, n. 23, p. 21-31, set/out. 1998

BG de Hoje

Num ranking - completamente arbitrário e inútil -, existente apenas na minha cabeça, o FAITH NO MORE ocupa lugar garantido na lista das dez bandas de rock mais importantes. Sabe dosar agressividade e contenção, tem uma "cozinha" ducarai (Billy Gould e Mike Bordin), além do vocalista Mike Patton, que possui a capacidade impressionante de "mudar o registro" a cada canção (ou dentro até da mesma música). Ashes to ashes é um bom retrato do grupo.