quarta-feira, 28 de junho de 2023

A incômoda força do ressentimento

 

 

Em uma entrevista publicada há cinco anos, no Guardian, Will Self foi categórico ao exprimir sua opinião a respeito do futuro do romance (o gênero textual/literário): "Penso que o romance está absolutamente condenado a uma forma de cultura marginal, junto com a pintura que usa cavalete e a sinfonia clássica". Perguntado se isso teria a ver com a migração das narrativas para os "box sets" (ou seja, os conjuntos de filmes ou episódios de séries disponiveis em DVDs, blue-rays ou, como é mais comum atualmente, nos serviços de streaming), o escritor britânico faz uma ótima comparação:

"A relação entre os romances e os filmes no século 20 foi como a relação entre Roma e Grécia. Os filmes dependiam dos romances, pelo menos em sua infância e juventude. O problema é que agora os próprios filmes foram balcanizados - retalhados, transmitidos por streaming, carregados em DVDs, assistidos nos telefones das pessoas -, não precisam mais da sua Grécia, não precisam mais dos romances para inspirá-los. É um desastre para o romance, na verdade - acho que o romance está em queda livre".

Sinceramente, não sei o que as pessoas andam lendo, sobretudo as mais jovens. Longos e intrincados romances? Não parece ser provável, considerando que há uma enxurrada de filmes, séries de TV e vídeo-games (alguns desses últimos, para além do jogo em si, apresentando uma roteirização nada elementar), cujo acesso é cada vez mais facilitado. Simplesmente não haveria tempo suficiente para ler, proveitosamente, poesia ou prosa. No Brasil, por exemplo, são 13 horas por semana no streaming, em média, para cada um conectado na internet, sem falar nas 12 horas semanais no Youtube, segundo levantamento da NordVPN (que, estranhamente, deixou de fora da apuração a coqueluche chamada Tik Tok). Talvez seja possível afirmar - exageradamente (ou não) - que a ânsia tão humana por histórias (sobretudo inventadas) é agora aplacada por outras formas de narrar, sucedâneas da tradicional literatura. Veja o próprio caso deste blogueiro que vos escreve: apesar de não ter me dedicado muito nos últimos seis ou sete meses, posso me considerar um leitor assíduo, principalmente de ficção (romances e contos); ainda assim, tenho "gastado" boa parte do meu tempo hoje em dia assistindo filmes e séries (vídeo-game nunca foi minha praia).

Sempre busco, dentro de minhas limitações, promover a leitura, mas não é minha intenção aqui choramingar. Trata-se, objetivamente, de constatar as atuais práticas culturais da maioria. Além disso, há ótimas histórias sendo contadas em séries e filmes excelentes. E não só: algumas dessas formas narrativas fílmicas/televisivas são um primor estético, para além das histórias que contam.

Contudo, quero crer que existe uma expressividade muito particular do romance, irrepetível noutras formas de narrar, da qual muita gente (este blogueiro incluso) ainda não consegue abrir mão.

Pensando num trabalho cujo autor é o próprio Will Self, fico imaginando se uma adaptação d'O livro de Dave ¹ para o audiovisual conseguiria ser tão bem urdida quanto é o texto literário. Com relação apenas à trama seca - ao plot -, daria uma boa série, acho eu, alternando, a cada episódio, a época em que Dave Rudman é apenas um taxista perturbado, percorrendo as ruas de Londres no final do século XX e início do XXI, com os acontecimentos do futuro pós-apocalíptico, em que ele é tido como um deus implacável (aliás,  é assim que os capítulos do livro foram organizados).

Um bom romance, entretanto, não se esgota nas peripécias de seu enredo.

Talvez volte a tratar desse ponto noutra oportunidade (afinal, como escrevi na primeira postagem que fiz sobre O livro de Dave, o trabalho publicado originalmente por Self em 2006 tornou-se um dos meus prediletos). 

A discussão principal de hoje, porém, será outra.

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Não saberia precisar quando os atuais partidários da extrema direita começaram a sair de suas furnas para marcharem pelas ruas sem qualquer prurido, degradarem o espaço e o debate públicos, elegerem representantes nos parlamentos e até alcançarem cargos máximos do poder executivo nalgumas oportunidades. O fato é que estão em campo por toda parte e não vejo sinais de que vão recuar ou se recolher.

A partir de uma perspectiva amparada no influxo dos afetos no terreno da política, alguns têm apontado que o ressentimento é um dos ardores que leva muitos a se colocarem ao lado dos extremistas de direita, de neofascistas e neonazistas

O medo e a esperança são provavelmente os afetos com maior tradição dentro da filosofia política, desde os contratualistas, pelo menos. Mundo afora, ultimamente, fala-se muito no efeito dos variados ódios dentro da sociedade. No Brasil, Vladimir Safatle (professor cujo pensamento sempre procuro acompanhar, na medida do possível) vem defendendo a necessidade de afirmarmos o desamparo, se quisermos fundar novas ações coletivas. 

Mas não nos desviemos do nosso tópico.

Maria Rita Kehl, em artigo publicado em 2020 ², observou, como psicanalista, que 

"a atualidade do tema ressentimento é, antes de mais nada, clínica. Essa paixão triste comparece com frequência em nossos consultórios, alimentada por acusações contra alguém ou contra o mundo todo. 'Eu sofro: alguém deve ser culpado por isso': assim Nietzsche resume a lógica do ressentido e seu apego ao dano. O ressentimento é uma constelação afetiva que serve aos conflitos característicos do homem contemporâneo, entre as exigências e as configurações próprias do individualismo, e os mecanismos de defesa do 'eu' a serviço do narcisismo. [...] Ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer".

Segundo Kehl, "o ressentido não é alguém incapaz de esquecer ou de perdoar; é um que não quer se esquecer, ou que 'quer não se esquecer', não perdoar, nem superar o mal que o vitimou". E prossegue: "O filósofo Max Scheler, que discute as teorias de Nietzsche a partir de uma ótica cristã, considera como 'auto-envenenamento psicológico' o estado emocional do ressentido, um introspectivo ocupado com ruminações acusadoras e fantasias vingativas".

Nesse momento, preciso confessar que ainda carrego comigo muito ressentimento, um dos responsáveis pelo meu contínuo estado de raiva. Tenho familiaridade com tal "auto-envenenamento psicológico". Essa "paixão triste" também diz respeito a mim; não vou dar uma de superior. Por isso sei como o ressentimento é forte a ponto de distorcer nossa visão das coisas.

Não estou afirmando, entretanto, que as inclinações e as movimentações políticas devam ser explicadas e analisadas recorrendo-se exclusivamente ao psiquismo humano. É fundamental, a meu ver, refletir de antemão sobre as determinações de base econômica, infraestruturais/materiais, que incidem diretamente na luta de classes. Afirmo apenas que as emoções e os afetos não devem ser desconsiderados quando resolvemos pensar amplamente sobre a política.

Mas o que tudo isso têm a ver com o romance do qual estávamos falando acima?

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Atentemos para um trecho do segundo capítulo d'O livro de Dave. Esse momento da narrativa ocorre em algum dia de dezembro de 2001, poucos meses após o atentado terrorista contra o World Trade Center e a subsequente invasão do Afeganistão pela coalizão capitaneada pelos EUA (tendo como principal apoiador o Reino Unido).

Um passageiro norte-americano que estava dentro do táxi de Dave Rudman, indo para o aeroporto, joga conversa fora com o motorista:

"[...] 'Não votei no Bush, mas, na minha opinião, ele tá lidando direito com isso, e não foram as Torres Gêmeas que nos puseram contra aqueles camaradas do Talibã - Deus sabe que coisa horrível foi aquilo - mas eu já sabia que era uma gente horrível quando explodiram as duas estátuas antigas do Buda, sabe quais?'

'Sei'. Camaradas? Deus sabe?

'Qualquer sujeito capaz de destruir uma coisa linda e antiga com tanta brutalidade... bom, nada que fizessem iria me surpreender depois daquilo... e o jeito como tratam as mulheres, também'.

No que me diz respeito, o jeito como tratam as mulheres é a melhor coisa daqueles arrombados... mantenham essas esfihas na linha, é o que eu digo... veja minha ex, simplesmente se mandou e bateu com a porra da ordem de restrição na minha cara, mas isso nunca teria acontecido em Cabul, eu teria enfaixado ela num daqueles troços pretos de freira antes que tivesse tempo de dizer pensão alimentícia... 'Não poderia estar mais de acordo. Foi um negócio muito triste'. Porque podiam ter ido um pouco mais longe, os desgraçados - tirem as crianças delas - nada de crianças, nenhuma porra de direito da mãe pra cima da gente..."

Will Self se vale de um recurso bem simples e trivial nos capítulos em que Rudman é o personagem central: o que se passa na cabeça dele é escrito com uma formatação de texto diferente. O passageiro não sabe da sua opinião completa sobre os Talibãs, mas o leitor, sim.

A origem do machismo e misoginia do taxista provavelmente é outra; o divórcio, porém, e o posterior impedimento (por culpa dele, aliás) de ver o filho certamente fizeram o seu ressentimento transbordar.

A decorrência?

Como disse acima, O livro de Dave conta duas histórias: em uma, Dave Rudman é apenas um taxista, com graves problemas de saúde mental e física (agravados pela situação financeira difícil), rodando por uma metrópole como Londres - multicultural e multiétnica -, que ele ama mas com a qual não consegue se ajustar; na outra, que se passa 2.000 anos depois, Dave é o nome de um deus, adorado por uma tirânica religião monoteísta, baseada num livro "sagrado". 

E de onde veio essa obra "sagrada"?

No auge de seu desatino, o taxista julgou ser o profeta de uma divindade (também chamada Dave) e escreveu as palavras "divinas" em placas de metal que enterrou escondido no quintal da casa em que a ex-mulher e o filho moravam. Após um cataclismo - provavelmente causado pelo aquecimento global -, milhares de anos no futuro, o livro "sagrado" foi descoberto. O que continha? Uma "coleção de prescrições e exigências ao que parece derivadas do mundo do trabalho dos taxistas londrinos, uma compreensão tortuosa numa mixórdia de fundamentalismo, mas na maior parte a própria misoginia vingativa de Rudman" (essa foi a avaliação da psiquiatra do taxista). 

Essa sandice em forma de texto virou fonte de adoração religiosa...

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Um ressentido sozinho, isolado, não consegue provocar grandes danos, geralmente.

Mas e quando eles se unem? Quando compartilham entre si suas tantas frustrações, "ruminações acusadoras e fantasias vingativas" (para lembrar as palavras de Maria Rita Kehl)? N'O livro de Dave, um grupo de pais divorciados monta uma associação chamada Fathers First, que depois assume o nome Fighting Fathers. No início, somente um clube cheio de sujeitos queixosos e injuriados; depois, uma turma pronta para abraçar intolerâncias mil, xenofobia e reacionarismo em geral.

Não se deve subestimar o ressentimento.

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¹ SELF, Will. O livro de Dave: uma revelação do passado recente e do futuro distante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009 [tradução de Cássio Arantes Leite]

² KEHL, Maria Rita. Ressentimento. A Terra é redonda (website). Artigo publicado em 28/07/2020. Disponível em <https://aterraeredonda.com.br/ressentimento-2/>. Acesso em 19/06/2023

BG de Hoje

Acho que já escrevi aqui nessa seção sobre os anos 1990 serem a minha década musical. Vários álbuns e artistas que despontaram naquela época figuram entre os meus preferidos. Semanas atrás, estava ouvindo os dois discos lançados no período pelo GIN BLOSSOMS e o New Miserable Experience, de 1992, é tão bom! É nele que está a faixa Found Out About You (que lembra muito uma certa fase do R.E.M.). Foi escrita pelo guitarrista Doug Hopkins, um dos fundadores da banda e principal compositor do grupo até então. A letra é melancólica, até um tiquinho sinistra. Transborda ressentimento - mas eu adoro essa canção. Hopkins acabou se suicidando em 1993. Foi demitido antes da finalização da gravação do disco. Não estava bem de saúde mental e o alcoolismo não ajudava. Triste.