segunda-feira, 22 de agosto de 2016

A brilhante tragicomédia de Will Self



Quando li pela primeira vez O livro de Dave*, há uns quatro anos, achei simplesmente fantástico. Naquela ocasião, entretanto, não escrevi uma linha sequer sobre o grande trabalho do ficcionista britânico Will Self. Farei-o agora, depois de ter relido, na semana passada, o romance lançado em 2006.

A narrativa, ao longo de seus 16 capítulos, alterna-se entre o "nosso" tempo - últimas décadas do século passado; início do atual - e um futuro pós-apocalíptico, distante centenas de anos. Alternam-se também momentos cômicos (por vezes grotescos) e momentos assustadoramente dramáticos e tensos. O sujeito citado no titulo da obra é Dave Rudman, apenas um taxista de Londres no "nosso" tempo, mas considerado um deus onipotente na era vindoura.

Nas grandes cidades, os taxistas constituem não apenas uma categoria profissional mas também uma espécie de tipo social (e, portanto, caricaturável), com suas práticas, manias e mentalidades peculiares, ajudando a compor o vasto folclore urbano. Tendo "passado metade de sua vida adulta dentro de um táxi", Dave Rudman é um homem altamente estressado e adoentado - fisica e mentalmente - porque seu universo de três dimensões - "tempo, distância e grana" - ficou ainda mais convulsionado em consequência do divórcio e, sobretudo, da perda de contato com o único filho. Ressentido, amargurado, racista, misógino e intransigente, Dave é um personagem nada simpático. Mas é impossível não se interessar por sua atribulada e, ao mesmo tempo, insignificante trajetória (pois quando ele passa a ser considerado deus já não se trata de Dave e sim da dävinanidade...), graças ao modo precioso como Will Self conduz e compõe a sua história, como acontece em toda boa Literatura. Uma pequena amostra do estilo do escritor: "A chuva amainara, passando a uma garoa que era como pregas de celulite nas poças cor de bosta, e um brilho oleoso a tudo banhava". Que singelo, não?

O livro de Dave pode ser lido como uma sátira às religiões, um estranho e fascinante guia turístico de Londres (pode-se dizer que a cidade acaba sendo o personagem central da narrativa) ou uma crítica à (in)sociabilidade humana - entre outras possibilidades.

Como visão crítica da convivência deteriorada característica de nossas sociedades irremediavelmente urbanas, observemos duas passagens:

1) "Michelle pensou em como a vida cotidiana era feita de uma série de pequenas ações malfeitas que, embora instantaneamente esquecidas, só traziam ruína, de um jeito ou de outro, tornando tudo grosseiro, torpe e indigno".

Quem faz essa reflexão (com a qual este blogueiro concorda integralmente, diga-se de passagem) é a ex-mulher de Dave Rudman, logo após saber que o ex-marido fora internado para tratamento psiquiátrico. O modo acidental como ela e Dave se conheceram é um ótimo exemplo dessas "pequenas ações malfeitas". Os poucos anos de duração de seu casamento - e o mal-estar experimentado por ambos dentro dele - demonstram que o resultado do convívio foi "apenas ruína, de um jeito ou de outro, tornando tudo grosseiro, torpe e indigno".

2) "Ele [Dave] dirigia - sair à esquerda em Frognal. Esquerda, Arkwright Road. Direita, Fitzjohn's Avenue - e discursava: merda isso, merda aquilo, macacada de merda e judeuzada de merda, putinhas de merda e mocreias de merda. Era como se, ao personificar um passageiro, Carl [o filho de Dave, entrando na adolescência nesse momento da narrativa, dando uma volta não planejada com o pai] houvesse se exposto ao mais profundo, escuro e atávico fluxo de consciência de um taxista".

As direções e indicações de trajeto são parte do chamado Conhecimento (The Knowledge), um conjunto de 320 rotas pelas ruas de Londres, que os profissionais precisam memorizar para passar nos testes organizados pelo PCO (Public Carriage Office), o principal órgão que regulamenta o serviço de táxi na capital da Inglaterra. O restante do excerto exibe o ódio acumulado dentro do cérebro perturbado do personagem. Recebendo e conduzindo diversos tipos de passageiros numa metrópole multicultural, tribalizada e socialmente heterogênea como Londres, Rudman (e seu táxi) circulam dentro desse amálgama colossal de gente incapaz de se suportar mutuamente mas que não pode deixar de ocupar e usar os mesmos espaços todos os dias (como, alías, acontece em qualquer grande cidade mundo afora).

Mencionei que O livro de Dave é um estranho e fascinante guia turístico de Londres. É também uma homenagem - estranhíssima, mais uma vez - à cidade. "Londres, London, Lõn-dãn - duas sílabas plúmbeas, como podiam ser tão mágicas? Ele [Dave] anelava Londres como uma identidade. Queria ser um londrino [...]". Noutra passagem, encontramos:

"Este [o interior de um black-cab, o tradicional táxi londrino] - era o que pareciam dizer - é o verdadeiro interior de Londres; seus insalubres prédios de escritórios, suas casas abafadas - até mesmo seus túneis de metrô abertos à força de broca - não passam de meras meias-águas, desprotegidas dos elementos. É apenas quando você se encontra dentro de um de nós que se vê inteiramente acomodado".

Por mais maluco que pareça, não consigo ver apenas derrisão no modo como o narrador desanca sua cidade; há também ali uma dose meio oculta de fascinação.

Mas é principalmente como composição satírica, tendo como alvo as religiões, que o romance de Will Self rende seus melhores momentos.

No auge de seu colapso mental e delirante (e "inspirado" pelo mormonismo), Dave Rudman escreve - e manda imprimir em metal - um livro ao qual, junto com o Conhecimento dos taxistas londrinos, adiciona uma série de regras para a vida conjugal e sexual, espelhadas nas situações experimentadas dentro de seu naufragado casamento com Michelle. Segundo a psiquiatra Jane Bernal, médica a quem o taxista recorreu, "é uma coleção de prescrições e exigências ao que parece derivados do mundo do trabalho dos taxistas londrinos, uma compreensão tortuosa numa mixórdia de fundamentalismo, mas na maior parte a própria misoginia vingativa de Rudman".

A peça metálica gravada foi enterrada no quintal da casa onde Michelle vivia com o novo companheiro e Dave esperava que um dia fosse tirada do buraco e lida pelo filho, Carl. Pois bem. Uma catástrofe ambiental atinge o planeta (consequência do aquecimento global, talvez?) e submerge diversas áreas. Após centenas de anos o livro de metal é desenterrado e os delírios de um taxista que não estava batendo bem da cachola tornam-se a base de uma religião cuja divindade absoluta é Dave.

As rotas que integravam o Conhecimento dos taxistas são tidas como "palavras arcanas"; os sacerdotes dessa religião são chamados "motoristas"; a própria percepção dos fenômenos da natureza é moldada pelo que está escrito no livro sagrado - o céu chama-se "vidro", a chuva, "lava-rápido", a lua, "lanterna" e a água potável, "evian", uma famosa marca de água engarrafada da Danone. O evento primordial de criação do universo e da vida presente nele recebe o nome de MadeInChina...

Will Self é genial ao valer-se dessa singular sociedade - situada no futuro, mas arcaica até o talo - para investir contra o absurdo inerente às interpretações dos supostos livros sagrados (e o absurdo representado pela própria existência de livros tidos como sagrados); contra o autoritarismo e a sanha opressora e punitiva característicos das organizações religiosas, além de execrar o papel de submissão que as crenças em divindades sempre destinaram às mulheres.

O livro de Dave acabou virando um de meus livros prediletos, mesmo tendo me aproximado dele poucos anos atrás. Não se surpreenda o(a) eventual leitor(a) se voltar a escrever sobre essa obra brilhante repetidas vezes aqui no blog.

Na próxima postagem falarei de alguns poemas de João Cabral de Melo Neto.
__________
* SELF, Will. O livro de Dave. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009 [Tradução de Cássio de Arantes Leite]

BG de Hoje

Mais do que uma artista, MADONNA é um ícone da cultura pop, embora não tenha hoje a popularidade atingida em seu auge nas décadas de 1980-90. Musicalmente falando, deve-se reconhecer, faz anos que não lança um disco relevante ou emplaca ao menos um hit radiofônico. Penso que seu último grande álbum apareceu em 2000, um CD intitulado justamente Music. Nele aparece a faixa Don't Tell Me, combinando um fraseado simples de violão com uma levada trip-hop hipnotizante, acompanhada de outros efeitos de estúdio. Além disso, a coreografia apresentada na segunda parte do clipe abaixo é muito legal.

OBS: Sempre notei um certo lado homoerótico no universo country (inclusive na sua versão abrasileirada). E aquelas calças apertadinhas e - sobretudo - as botas chiquéééérrimas são uma coisa bem gay, não? Nada de mal ou errado nisso, claro. Mas não é estranho que a maioria dos adeptos desse estilo seja tão homofóbica (além de machista)?