quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Um cavalo nada lúcido (e formado de que substância?)


Cheguei aos 45 anos de idade na semana passada. Como ainda não tenho a coragem suficiente para o suicídio, resta refletir sobre o envelhecimento.

Em Nebraska (direção de Alexander Payne, 2013), há um diálogo que pode parecer pouco relevante a princípio, mas fundamental para compreender melhor o protagonista Woody Grant (interpretado belissimamente pelo ator Bruce Dern) e do qual sempre me lembro, desde que assisti a esse ótimo filme pela primeira vez.

Woody e seu filho mais novo, David, estão na fictícia cidade de Hawthorne (as cenas foram filmadas no município de Plainview, Nebraska), onde passarão um tempo com seus parentes antes de partirem para Lincoln, em busca de um prêmio de 1 milhão de dólares que o velho pensa, ingenuamente, ser verdadeiro. Após uma caminhada, em que Woody passa pela oficina da qual fora proprietário, os dois param num bar e David acaba resolvendo tomar umas cervejas com o pai, naquilo que poderia facilmente descambar para um momento-ternurinha-entre-pai-e-filho bem piegas. Mas, felizmente, não é o que acontece. Está claro que os dois não têm o hábito de conversar um com o outro (até porque Woody sempre fora um sujeito caladão) e, para quebrar o silêncio, o filho começa falando do fim de seu relacionamento com a namorada. O octogenário, distraído (talvez pela caduquice, por não se lembrar ou porque simplesmente não dá a mínima), mal ouve o que David está dizendo. Este então resolve saber um pouco do passado dos pais:

"- Como você e a mamãe acabaram se casando?
- Ela queria.
- E você não?
- Eu pensei. 'Por que não? [ele diz, no inglês original, 'what the hell']'
- Já se arrependeu de ter casado?
- O tempo todo. Podia ser pior.
- Você devia estar apaixonado. Pelo menos no começo.
- Nunca aconteceu.
- Vocês conversavam sobre ter filhos? Quantos queriam e coisas assim?
- Não.
- Então por que nos tiveram? [David tem um irmão mais velho, Ross]
- Porque eu gosto de transar. E sua mãe é católica. Então, descubra por si.
- Você e mamãe nunca falaram sobre ter filhos?
- Pensei: 'Se continuarmos transando, vamos acabar tendo alguns' ".

Um trecho dessa cena pode ser visto aqui. David, mais um dos muitos iludidos nesse mundo com a ideia de amor romântico, espanta-se não tanto com a franqueza do pai, mas por descobrir que Woody (e provavelmente muitos da geração dele) não via nada de muito importante ou especial em ter filhos. Ou mesmo em não ter nenhum. O personagem, até aquele momento apenas um velho turrão, ranzinza e genioso (como a maioria dos velhos, aliás), passa a ficar mais interessante para o espectador (pelo menos comigo foi assim), e o decorrer do filme confirmará isso.

O diálogo prossegue; David pergunta:

"- Já pensou em deixá-la [Kate, mãe de David]?
- Eu ia acabar com outra pessoa que ia viver me enchendo.
- [David fica agastado] Ah, é. É. Ela aguentou sua bebedeira esse tempo todo!
- Não bebo tanto assim...
- Você é um alcoólatra!
- Besteira!
- Como assim, 'besteira'? Sabia que você tinha problemas quando eu tinha 8 anos! Eu via você esconder bebida na garagem.
- Você roubava também. Percebi que era você. Você me custou muita grana.
- Eu despejava tudo fora, porque estava cansado de te ver bêbado.
- Sabia que era você. Seu irmão não era de agir às escondidas... Eu servi ao meu país. Eu pago meus impostos. Tenho direito de fazer o que eu bem quiser.
- Então você bebe mesmo.
- Um pouco...
- Muito!
- Tá bom! Eu bebo muito! Que diabo! E daí? Você faz o que quer e eu também. Você também beberia se fosse casado com sua mãe. Não cabe a você me dizer o que fazer, seu babaca [pra ser exato ele diz, 'you little cocksucker']".

O que fora a vida de Woody? Nascer e crescer numa cidadezinha desimportante, ser obrigado a participar da estupidez da guerra (no caso, a da Coreia), trabalhar como mecânico, casar-se e ter uma família apenas porque isso fazia parte das convenções sociais de seu tempo (e muitos se casam até hoje pelo mesmo motivo). Ele buscava na bebida uma forma de escapar, pelo menos de vez em quando, à toda essa banalidade. É difícil sentir simpatia por esse personagem. Não há qualquer traço de grandeza nele. Pelo contrário: Woody Grant é uma nulidade, um bebum e um pé-no-saco (mas a verdade é que nós o julgaremos melhor até o final do filme). E por que ele nos é desagradável - pelo menos antes da narrativa cinematográfica se concluir? Talvez tenhamos um certo pudor em admiti-lo, mas, sem meias palavras, são a decrepitude e toda a carga de derrota e malogro implícitas na velhice - representadas na figura do personagem - responsáveis por boa parte de nossa desafeição. E nem é necessário que a velhice esteja consumada em nós. Apenas a sua perspectiva já nos é desconsoladora. Apavorante.

Noutra passagem do filme, o protagonista, seus filhos e a esposa Kate (interpretada por June Squibb, mais uma atuação belíssima) visitam a antiga residência, agora abandonada, onde Woody fora criado. A sequência é linda, tocante. A certa altura, David pergunta ao pai - já do lado de fora da casa, os dois olhando o horizonte -: "Já viu o suficiente?". E o velho responde:

"I suppose. It's just a bunch of old wood and some weeds". [Acho que sim. É só um monte de madeira velha e mato]

Pouca coisa, para alguns de nós, poderia simbolizar tão bem as lembranças restantes de uma vida inteira - madeira velha e mato.

A fotografia em preto e branco e os grandes planos abertos mostrando a paisagem rural do norte e do meio-oeste dos EUA fazem de Nebraska um filme muito bonito, visualmente falando. Gosto dele, todavia, principalmente pelo roteiro escrito por Bob Nelson. Não há neste qualquer tipo de excesso ou afetação. E conforme a história vai sendo contada, entende-se um pouco mais o verdadeiro motivo que leva Woody Grant a insistir na busca do seu prêmio inexistente. Mais do que a demência, a perturbação mental, é a necessidade de agarrar-se a alguma coisa, a medida que seu tempo acaba, a real explicação desse (talvez) derradeiro esforço. Isso emociona, não dá pra ficar indiferente. David, em determinado momento, ouve de sua sensata mãe: "Tenha cuidado ou é nisso que vai se transformar", referindo-se à condição do velho Woody. Essa advertência também se dirige ao espectador.

. . . . . . .

Minha reflexão sobre o envelhecimento conduz-me também à poesia de Carlos Drummond de Andrade. Hoje, neste dia 17 de agosto, completam-se 30 anos de falecimento do itabirano.

O escritor teve uma vida longa. E deve-se enfatizar que, mesmo idoso, continuou escrevendo e publicando num ritmo e constância apreciáveis (para se ter ideia, somente aos 82 anos pôs fim à sua atividade de cronista). Contudo, sendo razoavelmente (apenas razoavelmente, devo informar) familiarizado com sua obra, surpreende-me que a idade provecta (putz, de onde desenterrei essa expressão!) e seu próprio envelhecimento pessoal aparecem pouco nos textos poéticos lançados a partir de Boitempo & A falta que ama - quando Drummond já passara dos 65. Além disso, quando estes temas estão presentes, os poemas resultantes não são tão memoráveis assim.

Claro, há alguns, ótimos, relacionados à morte - que, como nenhum de nós ignora, é o passo seguinte do envelhecer.

Penso, por exemplo, em Falta pouco (de A falta que ama ¹):

Falta pouco para acabar
o uso desta mesa pela manhã
o hábito de chegar à janela da esquerda
aberta sobre enxugadores de roupa.
Falta pouco para acabar
a própria obrigação de roupa
a obrigação de fazer a barba
a consulta a dicionários
a conversa com amigos pelo telefone.

Falta pouco
para acabar o recebimento de cartas
as sempre adiadas respostas
o pagamento de impostos ao país, à cidade
as novidades sangrentas do mundo
a música dos intervalos.

Falta pouco para o mundo acabar
sem explosão
sem outro ruído
além do que escapa da garganta com falta de ar.

Agora que ele estava principiando
a confessar
na bruma seu semblante e melodia.

Ou em A morte a cavalo (de A paixão medida ²)

A cavalo de galope
a cavalo de galope
a cavalo de galope
lá vem a morte chegando.

A cavalo de galope
a cavalo de galope
a morte numa laçada
vai levando meus amigos.

A cavalo de galope
depois de levar meus pais
a morte sem prazo ou norte
vai levando meus irmãos.

A morte sem avisar
a cavalo de galope
sem dar tempo de escondê-las
vai levando meus amores.

A morte desembestada
com quatro patas de ferro
a cavalo de galope
foi levando minha vida.

A morte de tão depressa
nem repara no que faz.
A cavalo de galope
a cavalo de galope

me deixou sobrante e oco.

Se, entretanto, busco no momento os melhores poemas de Carlos Drummond de Andrade sobre o envelhecimento - melhor dizendo, sobre a passagem do tempo (e o tempo é um tópico constante para o artista), no que esta redunda inevitavelmente em envelhecimento para nós, seres orgânicos e finitos - devo concentrar-me em A rosa do povo, lançado originalmente em 1945, quando o poeta tinha "apenas" 43 anos de idade.

Um dos mais importantes livros de poesia da nossa literatura, A rosa do povo ³ reúne alguns dos textos mais significativos da obra drummondiana: A flor e a náusea, Canto ao homem do povo Charlie Chaplin, O elefante, Resíduo (sobre o qual já escrevi aqui), Morte do leiteiro, O mito, Nosso tempo, O medo, Procura da poesia, Consolo na praia... Devemos direcionar a atenção, contudo, a partir de agora, para quatro poemas desse livro especificamente: Idade madura, Versos à boca da noite, Indicações e Os últimos dias.

. . . . . . .

Manuel Bandeira, aos 64 anos, publicou em A estrela da tarde, um inesquecível poema intitulado Preparação para morte (o eu-lírico enumera uma série de coisas que compara a milagres e encerra com este verso: "- Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres"). Mas, sendo sincero, não conheço na literatura brasileira algo mais belo como "programa de preparação para a morte" do que Os últimos dias, de Drummond.

Se pudesse, muito canhestramente, resumir esse poema, diria se tratar de um conselho para aproveitar o tempo que nos resta, da melhor maneira que se possa. Isso fica evidenciado em passagens como "O tempo de conhecer mais algumas pessoas,/de aprender como vivem, de ajudá-las" e

"Este tempo, e não outro, sature a sala, banhe os livros,
nos bolsos, nos pratos se insinue: com sórdido ou potente clarão.
E todo o mel dos domingos se tire;
o diamante dos sábados, a rosa
de terça, a luz de quinta, a mágica
de horas matinais, que nós mesmos elegemos
para nossa pessoal despesa, essa parte secreta
de cada um de nós, no tempo".

É um texto, a meu ver, surpreendentemente luminoso, sobretudo quando se considera a dissolução inerente ao fim da vida, decorrente do natural processo de envelhecimento. E por falar em luminoso, a estrofe abaixo ganha ainda mais em beleza e irrompe plena de significado, quando lembramos que Drummond era ateu:

"O tempo de despedir-me e contar
que não espero outra luz além da que nos envolveu
dia após dia, noite em seguida a noite, fraco pavio,
pequena ampola fulgurante, facho, lanterna, faísca,
estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar,
mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo
é boa medida, irmãos, vivamos o tempo".

Por sua vez, os poemas Indicações e Versos à boca da noite têm em comum a descrição dos efeitos - no espírito, no corpo e nas coisas - do envelhecimento e da passagem do tempo. Diz o poeta:

"Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva...
Uma aceitação maior de tudo
e o medo de novas descobertas".
                                         (Versos à boca da noite)



"Talvez uma sensibilidade maior ao frio,
desejo de voltar mais cedo pra casa.
Certa demora em abrir o pacote de livros
esperado, que trouxe o correio [...]

[...] A caneta velha. Recusas-te a trocá-la
pela que encerra o último segredo químico, a tinta imortal.
Certas manchas na mesa, que não sabes se o tempo,
se a madeira, se o pó trouxeram consigo [...]

[...] Lençóis amarelecem, gravatas puem,
a barba cresce, cai, os dentes caem,
os braços caem, 
caem partículas de comida de um garfo hesitante,
as coisas caem, caem, caem
e o chão está limpo, é liso.
Pessoas deitam-se, são transportadas, desaparecem,
e tudo é liso, salvo teu rosto
sobre a mesa curvado; e tudo imóvel".
                                           (Indicações)

Oportuno observar que algumas passagens de Versos à boca da noite ecoam noutros poemas de Drummond. As recordações e a memória de coisas passadas pesando às vezes como fardo - como se lê nesta estrofe: "E depois das memórias vem o tempo/trazer novo sortimento de memórias,/até que, fatigado, te recuses/e não saibas se a vida é ou foi". - estão presentes em Resíduo, incluído no próprio A rosa do povo. O desejo de encontrar uma explicação para a vida será melhor explorado no monumental A máquina do mundo, publicado no livro seguinte, Claro enigma.

Mas é Idade madura, entre os quatro textos assinalados, aquele de que mais gosto.

O eu-lírico que fala neste poema pouco se importa com as expectativas e as pressões formadas ao redor daqueles que supostamente atingiram a maturidade: "De longe vieram chamar-me./Havia fogo na mata./ Nada pude fazer,/Nem tinha vontade".  Quisera eu ter seu destemor para dizer "Nem mesmo sinto falta/do que me completa e é quase sempre melancólico". ou "Posso desprezar ou querer os institutos, as lendas". Velho - e pior - imaturo, também jamais serei capaz de pronunciar algo como:

"Ninguém me fará calar, gritarei sempre
que se abafe um prazer, apontarei os desanimados
negociarei em voz baixa com os conspiradores,
transmitirei recados que não se ousa dar nem receber,
serei, no circo, o palhaço,
serei médico, faca de pão, remédio, toalha,
serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia,
serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais:
tudo depende da hora
e de certa inclinação féerica,
viva em mim qual um inseto".

E em Idade madura ocorre uma das metáforas/imagens mais notáveis criadas por Drummond:

"Lúcido cavalo
com substância de anjo
circula através de mim".

Durante anos e anos forcei-me a dar uma interpretação a esses versos, sem chegar a qualquer conclusão que me satisfizesse. Hoje contento-me em afirmar que eles evocam uma postura diante do existir que eu almejei alcançar numa outra época de minha vida.

Entretanto, se houver algum cavalo circulando em mim - e já desisti de procurar descobrir a substância que o poderia formar -, desloca-se hoje errática e confusamente, sem qualquer vestígio de lucidez.

. . . . . . .

Envelhecer é uma das circunstâncias da existência. Não é, obviamente, um defeito ou falha de caráter dos indivíduos. O que não altera em nada, penso eu, o fato de ser algo indesejado, ominoso até, em muitos casos.

Quando paramos para pensar, as formas de contornar ou evitar a velhice podem ser tanto dramáticas, esmagadoras, quanto ridículas e grotescas. Por isso, a arte torna-se imprescindível para, na forma de uma narrativa cinematográfica tão bonita (e divertida, a seu modo) como Nebraska ou dos poemas de um monstro sagrado da Literatura como Carlos Drummond de Andrade, proporcionar um aprendizado do envelhecimento.

Nas próximas duas postagens, escreverei sobre um tema essencial, a partir das reflexões do cientista social cubano Carlos Moore, reunidas no livro Racismo e sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo.
__________
¹ ANDRADE, Carlos Drummond de. Falta pouco. In: _________. 100 poemas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 352 (trata-se de uma edição bilíngue, português-espanhol)

² ANDRADE, Carlos Drummond de. A morte a cavalo. In: _________. A paixão medida. 6 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 133-134

³ Todos os excertos de poemas do livro A rosa do povo foram extraídos da 40 edição, publicada pela editora Record em 2008.

BG de Hoje

Há uma vertente do heavy metal que me agrada muito, do ponto de vista sonoro: o chamado groove metal, cujo maior expoente foi a banda texana Pantera (sempre fui fã do som dos caras, mas não das mensagens que costumavam divulgar, é bom esclarecer). Outros grupos dos quais gosto nesse estilo são o White Zombie, o Fear Factory e o Soulfly (liderado pelo brasileiro Max Cavalera). Na década de 1990, o veterano Rob Halford, um dos maiores cantores da história do rock pesado, resolveu, após um afastamento do Judas Priest, aventurar-se pelo groove metal. O britânico juntou-se a (na época) jovens músicos norte-americanos muito bons (destaque para o baixista Jack "Jay Jay" Brown e o guitarrista Russ Parrish, hoje membro do engraçado grupo-sátira Steel Panther) para formar o FIGHT. Uma das faixas mais legais gravadas por eles foi Little Crazy (repare na guitarra com efeito slide, uma coisa não muito comum de se ouvir no heavy metal).