quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Racismo: uma longa, longa história (I)


"Until the philosophy which holds one race superior
and another 
inferior
is finally
and permanently
discredited
and abandoned,
everywhere is war".

Bob Marley (citando Haile Selassie)- War


Se não me engano, a primeira vez que tomei conhecimento da jornalista e consultora empresarial francesa Alexandra Baldeh Loras foi no (extinto) Programa do Jô. Com desenvoltura e falando num português muito bom, ela (na época consulesa da França em São Paulo) não botou panos quentes ao tratar de um tema que deixa o "cidadão de bem" brasileiro sempre melindrado: o racismo (a entrevista pode ser acessada aqui). Desde então, Loras tem aparecido esporadicamente na mídia local, assinando artigos inclusive, como o que se intitula O mundo real, só que ao contrário, publicado no (ótimo) Nexo Jornal, em agosto do ano passado.

Valendo-se de uma fotografia produzida para a revista Vogue, na qual cinco mulheres negras, num cenário que indica opulência, representam as ricaças e três mulheres brancas vestem-se como empregadas domésticas, Alexandra Loras pergunta:

"Como você enxerga essa foto? Causa algum estranhamento? O simples fato da imagem gerar polêmica mostra que não temos uma sociedade igualitária porque, se no mundo em que vivemos, negros e brancos fossem tratados da mesma forma, uma inversão de papéis não incomodaria ninguém. Mas como estamos acostumados com essa sociedade que promove privilégios aos brancos, eles não se colocam no lugar dos negros. O nosso objetivo foi gerar uma reflexão sobre o tema, provocar o debate e gerar discussão. Então seja qual for a sua opinião sobre a imagem, o importante é que você pense sobre o assunto, converse sobre ele e reflita. Minha pergunta aos brancos é: você trocaria seu lugar para ser negro em nossa sociedade com todas as consequências que ser negro ainda representa em 2016 [ano da publicação do artigo]?"

Convivo com muitas pessoas brancas - inteligentes, sensíveis e gentis, vale ressaltar - que, apesar de admitirem haver racismo no Brasil, evitam falar sobre o tema e, às vezes, até desqualificam qualquer proposição no sentido de enfrentamento efetivo do problema (como as políticas de ação afirmativa, cuja forma de aplicação mais conhecida no Brasil se dá por meio das cotas em instituições de ensino superior e no serviço público). Há uma certa dificuldade - ou será recusa? - em compreender a noção de reparação histórica e perceber a necessidade de compensar as iniquidades decorrentes de quase 400 anos de tráfico e escravização sistemática de pessoas, não mitigadas com a Abolição promulgada em 1888. E já ouvi de um conhecido branco: "Mas eu nem era nascido quando o regime escravocrata existia! O que isso tem a ver comigo?". A esse respeito, Alexandra Baldeh Loras escreve: "O branco de hoje não tem culpa pelas atrocidades que foram feitas no passado, mas somos todos responsáveis por solucionar as consequências traumáticas e reequilibrar nossa sociedade".

Resta saber se a sociedade brasileira, tão confortável com as injustiças de toda espécie, está realmente disposta a despender esforços nesse sentido. Não tenho esperança em relação a isso (para falar a verdade, este país - e o mundo, em geral - só me tem provocado apreensão e desalento, dia após dia). Numa coisa, pelo menos, ainda creio: a informação e o conhecimento são grandes aliados numa luta dessa envergadura. É preciso ter uma ampla e profunda compreensão da problemática do racismo, para não cairmos na ingenuidade de achar que só a boa vontade e os bons sentimentos individuais, por mais requeridos que sejam, resolvem a questão. Como observa Carlos Moore, em seu corajoso livro Racismo e Sociedade ¹, "[...] existe uma tendência crescente para trivializar o racismo, seja relegando-o à esfera puramente das relações interpessoais, seja reduzindo-o ao plano de meros preconceitos que 'todo mundo tem' ".

Em entrevista altamente recomendável por este blogueiro, concedida à jornalista Eliane Brum e publicada em 2015 na versão brasileira do jornal El País (disponível aqui), Moore fornece um abrangente e incisivo conceito de racismo:

"O racismo não é uma simples tecedura de preconceitos aberrantes, nem uma confabulação ideológica descartável, tampouco uma realidade oportunista surgida há pouco, e muito menos uma 'doença'. Se trata de uma estrutura de origem histórica, que desempenha funções benéficas para um grupo, que por meio dele constrói e mantém o poder hegemônico com relação ao restante da sociedade. Esse grupo instrumentaliza o racismo através das instituições e organiza, por meio do imaginário social, uma teia de práticas de exclusão. Desse modo, preserva e amplia os privilégios sociais, o poder político e a supremacia total adquiridos historicamente e transferidos de geração a geração. Em uma sociedade já multirracial e mestiçada, ele serviria para preservar o monopólio sobre os recursos para o segmento racial dominante. Seria um sistema total que se articula desde o início mediante três instâncias operativas entrelaçadas, porém distintas: 1) as estruturas políticas, econômicas e jurídicas de comando da sociedade; 2) o imaginário social total, que controla a ordem simbólica; e 3) os códigos de comportamento que regem a vida interpessoal dos indivíduos que fazem parte dessa comunidade. Assim, não é possível atacar o racismo em apenas um lugar, porque nada vai se modificar. Hoje em dia, o racismo atingiu tal grau de sofisticação que nega a si mesmo e pretende não existir. Negar a existência do racismo, transformá-lo em um tabu social, tratá-lo como 'aberração' ou reduzi-lo à 'discriminação' e ao 'preconceito' é a melhor forma de encobri-lo e protegê-lo enquanto estrutura sistêmica. Por isso, sempre que o ser humano o nega ou simplifica, está automaticamente em 'cumplicidade sistêmica' com ele".

Não há como algo tão complexo ter-se originado apenas na segunda metade do último milênio, ainda que a imensa maioria dos estudos voltados ao tema concentre-se nesse período - que é quando se inicia o tráfico transatlântico de africanos escravizados. Carlos Moore, entretanto, propõe em Racismo e Sociedade (o livro a ser discutido no blog hoje e na próxima semana) que "é preciso executar uma espécie de reorientação epistemológica, a qual nos levaria a examinar a problemática do racismo muito além do horizonte estreito dos últimos quinhentos anos de hegemonia europeia sobre o mundo".

Desse modo, sua abordagem realiza um longo percurso histórico, que não deixa passar o "proto-racismo" da Antiguidade greco-romana, chegando até o imperialismo/colonialismo europeu do século XIX e início do século XX, e dedicando a parte III de seu trabalho às feições contemporâneas do racismo no atual mundo globalizado.

O cientista social cubano lança ousadas hipóteses antropológicas. Reconhecendo de saída que a violência ocupa uma parte destacada da história humana (um dos pontos fortes do autor, na minha opinião), sobretudo a violência organizada e executada planejadamente, como no caso da guerra e das tomadas de território, ele pergunta logo no primeiro capítulo:

"[...] os hominídeos conheceram, como nós, seus descendentes, as carnificinas, os genocídios e as guerras permanentes em torno da posse de recursos e de territórios? Qual pode ter sido o papel desempenhado pelas diferenças morfofenotípicas como linhas de auto-reconhecimento e agrupamento entre os humanos arcaicos? De que modo o surgimento das diferentes tonalidades de cor da pele influíram nas linhas de identificação de si mesmo e das demais espécies?"

Com o surgimento do Homo sapiens - e todos os paleantropólogos atualmente concordam que o gênero humano originou-se na África -, essas diferenças possivelmente continuaram a influir. Carlos Moore acredita que, num passado remoto, grupos humanos de pele negra (que o autor chama de melanodérmicos, diferenciando-os dos leucodérmicos, os de pele branca) seriam encontrados em várias partes do planeta e não só no continente africano. Dessa forma, "naqueles períodos longínquos, caso houvesse contestação pela posse de territórios com as populações já racialmente diferenciadas, essa ubiquidade de populações autóctones de pele negra se constituiria na mais óbvia referência demarcatória para diferenciar os oponentes. Teria sido isso o que realmente aconteceu?"

Em Racismo e Sociedade, Moore também desenvolve, na segunda parte do livro, uma argumentação ousada a respeito do próprio capitalismo moderno: este não teria eclodido sem o "auxílio" do racismo. Atentemos para o excerto seguinte:

"O expansionismo e o militarismo além-fronteiras aparecem como fatores essenciais da ótica que maximiza a eficácia econômica como ideal e fundamento da sociedade. Por sua vez, a busca por essa eficácia a todo custo implica a imposição de uma ordem societária cada vez mais repressiva, na medida em que os mecanismos que tendem a favorecê-la se contrapõem àqueles freios sociais que garantem as bases da solidariedade. Em princípio, a fascistização de uma sociedade somente é possível quando é destruída a maior parte das barreiras ético-morais que a sustentam. No entanto, ao longo da história, constatamos a existência de sociedades capazes de manter internamente uma ordem ético-moral formal compatível com a busca pela máxima eficácia econômica, mesmo sendo, ao mesmo tempo, fundamentalmente predatória além-fronteiras. Desse modo, cabe perguntar: qual o elemento, cultural ou de outra ordem, que permite tal movimento contraditório e, aparentemente, aberrante?

Os colonialismos e imperialismos surgidos em diversas épocas na Europa e no Oriente Médio Semita (Persa, Árabe, Império Otomano...) exibem uma dupla natureza constituída pela relativa coerência ético-moral interna, e a irrestrita crueldade para com o 'Outro Total', além fronteiras. Como vimos, esse é designado a partir do fim do Império Romano, não somente em termos essencialmente xenófobos, mas crescentemente em termos de feições, de cor e de textura dos cabelos. O 'Outro Total' é de pele negra, de cabelos crespos, de feições 'toscas' e habita, simbólica e concretamente, um continente distante, escuro e ameaçador. Os dados à nossa disposição apontam para um fato que dificilmente poderá ser ignorado sem comprometer a própria confiabilidade do relato histórico: a partir da queda do Império Romano, o continente africano e seus habitantes de pele negra converteram-se, crescentemente, no alvo predileto dos empreendimentos de procura de mão-de-obra escravizada pelas grandes potências do Oriente Médio e da Europa".

Foi essa mão-de-obra que propiciou o excedente e a acumulação de riqueza necessária para a expansão e consolidação do capitalismo como hoje o conhecemos, segundo Moore. E discordar dele não é fácil.

No texto de abertura da entrevista citada acima, Eliane Brum afirma que Racismo e Sociedade "tornou-se referência e polêmica. Carlos Moore está longe de ser uma unanimidade, dentro e fora do movimento negro, o que não parece preocupá-lo". Espero que o(a) eventual leitor(a), a partir dessa observação, esteja ainda mais interessado no livro. Fica, portanto, o convite para a próxima postagem, quando pretendo esmiuçar Racismo e Sociedade um pouco mais.
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¹ MOORE, Carlos. Racismo e sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007 (Esse livro saiu em 2ª edição ampliada, pela Nandyala Editora, em 2012) 

BG de Hoje

Dança, composição de CHICO CÉSAR, já foi BG noutra postagem há alguns anos. Não faz mal. Adoro essa canção. Repito sem problemas, agora numa apresentação que conta com a participação do paulistano Dani Black.