sábado, 18 de fevereiro de 2017

A preocupação com as calorias e a desnutrição da política


No mês passado, li um ótimo texto de Nathali Macedo, colunista do Diário do Centro do Mundo, que me levou a pensar na relação entre a preocupação com quilos "a mais" e a diminuição da consciência política. Na ocasião, ela apontava para o anacronismo dos famigerados concursos de beleza, em particular os de misses - sendo o Miss Universo, o de maior visibilidade, "mais obsoleto que aparelho de fax. Mais cafona que os quadros de Romero Britto. Mais desnecessário que os tweets de Janaína Paschoal".

A articulista, lembrando as surreais críticas surgidas nas mídias sociais e direcionadas à representante do Canadá na última edição do referido concurso (supostamente, a candidata estaria "acima do peso" e "não teria corpo de miss"), afirma: "Ter 'corpo de miss', lamento, está fora de moda. A ressignificação da beleza é um sintoma do empoderamento feminino, quer queira a indústria da moda, quer não".

Mas a indústria da moda e da beleza, mancomunada com a indústria do entretenimento e a publicidade, formam um troço poderoso, difícil de escapar. Não a ponto, porém, de impedir a resistência e o questionamento: "Quantos bilhões ela deixaria de lucrar se todas as mulheres acordassem amanhã se sentindo fabulosas?"

A indústria da moda e da beleza busca impor uma lógica cruel, cujos desdobramentos são danosos para o conjunto da sociedade:

"Quanto mais nos sentirmos gordas, feias e insuficientes, mais seremos lucrativas. Não importa se isso custa vidas de mulheres anoréxicas/bulímicas, ou das que morrem em procedimentos estéticos mal feitos. Não importa se isso custa a felicidade de quem vive todos os seus anos buscando uma beleza fictícia.

Permitam-me repetir o óbvio: O padrão de beleza não existe na realidade – é criado na mídia, retocado no photoshop e endossado pelos concursos de beleza e blogueiras fitness.

A beleza plástica reverenciada por estes concursos é uma fraude: as mulheres reais – que pagam contas, vão ao supermercado, buscam o filho na creche – nunca chegarão lá, não importa o quanto se esforcem, e não importa o quanto a indústria da beleza procure convencê-las de que basta que se esforcem. Não basta".
O texto termina com um bela frase que, suponho, refere-se a uma postagem escrita pela professora e blogueira feminista Lola Aronovich, do conhecido blog Escreva Lola Escreva:
"Comece uma revolução. Ame o seu corpo".
A obsessiva (e por vezes insana) preocupação de muitos e muitas com a "boa" aparência, decorrente, por sua vez, da "boa" forma física produz outros efeitos nocivos no terreno da política, além desses ressaltados por Nathali Macedo. No seu livro Em busca da política¹, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (falecido no mês passado) escreve:

"Ocupados como estamos em combater ou manter à distância uma sempre crescente variedade de alimentos venenosos, de substâncias que engordam, de emanações cancerígenas, de estilos de vida prejudiciais à saúde e uma miríade de aflições que ameaçam a boa forma física, sobra pouco tempo (e esperamos que não sobre nenhum) para ficar remoendo sobre a futilidade disso tudo".

Por que tudo isso seria fútil? Bem, sendo curto e grosso, é porque não podemos excluir a morte da equação existencial.

Há doenças relacionadas com o aumento de peso? Sem dúvida. Ter uma dieta saudável e praticar atividades físicas regularmente faz bem? Concordo. Porém, não tenhamos ilusões: ao final, morro eu e morre o triatleta vegano não-fumante campeão mundial (muito provavelmente, admito, bem depois de mim). Mas tem mais. Fala-se bastante em garantir "qualidade de vida" (prefiro pensar em qualidade de morte) para se justificar a preocupação com a "boa" forma física. Nada contra. Mas desconfio que, no fundo, esse não é o real motivo na maioria dos casos. Retornemos a Bauman:

"Na sua forma pura e bruta, o medo existencial que nos torna ansiosos e preocupados é incontrolável, intratável e portanto incapacitante. A única maneira de suprimir essa verdade horripilante é dividir o grande medo esmagador em pedacinhos menores e controláveis - reformular a grande questão (sobre a qual nada podemos fazer) num conjunto de pequenas tarefas 'práticas' que podemos esperar realizar. Nada acalma mais o ser pavoroso que não conseguimos erradicar [a insegurança inerente ao estar vivo, representada em última instância pela morte] do que se preocupar e 'fazer algo' a respeito do problema que podemos enfrentar. Considerando tal necessidade, a gordura parece mais uma mania coletiva, uma dádiva divina. Pode ser uma ilusão (e é: nenhum acúmulo de gramas e polegadas perdidas jamais vai preencher o abismo), mas enquanto pudermos nos iludir podemos pelo menos continuar vivendo - e vivendo com um propósito, vivendo portanto uma vida com sentido [ainda que este propósito se resuma a manter a "boa" forma e protelar a morte].
A gordura é apenas uma questão da grande família das 'tarefas práticas' que o eu órfão pode estabelecer para si mesmo apenas para afundar e afogar o horror da solidão no mar das pequenas mas absorventes preocupações que consomem o nosso tempo e a nossa mente [...]".

Caso consiga emagrecer "X" kg em "Y" meses, divido assim meu "grande medo esmagador [do desamparo inerente ao estar vivo] em pedacinhos menores e controláveis". - são menos 200 gramas essa semana (viva!); não vou comer esse sanduíche podrão, nem aquela taça de sorvete (que resistência heroica!). E por aí vai. Convenço-me de que nada posso fazer quanto aos outros fatores que me inquietam e perturbam: a precarização das condições de trabalho e a ameaça de desemprego, o enfraquecimento dos instrumentos de proteção social, a concentração da renda nas mãos de poucos, tudo isso está muito além de meu raio de ação. Dieta e academia três vezes por semana, por outro lado... Pois, ilusoriamente, acredito que manter a "boa" forma é um objetivo existencial suficiente - "vamos todos morrer esbeltos", como ironizou uma vez Frei Betto - e, em última análise, é uma das únicas "tarefas práticas" das quais posso dar conta sem ser instado a me associar com outros seres humanos.

Individualista em essência,

"o que o caso da gordura mostra - prossegue o sociólogo polonês - é que uma vez privatizada e entregue aos recursos pessoais a tarefa de lidar com a insegurança existencial humana, os medos que cada um sente só podem ser 'contados' mas não partilhados ou unidos numa causa comum com a qualidade nova da ação conjunta. Não há um caminho óbvio que leve dos terrores privatizados às causas comuns que podem se beneficiar do confronto e do enfrentamento conjunto".
Ou seja, o caso da inquietação com o peso e a gordura corporal (e, por favor, é claro que não estou, com essa discussão, negligenciando os danos à saude decorrentes da obesidade) indica nossa incapacidade de encontrar meios para a organização coletiva, bem como sustentar um verdadeiro domínio público, lembrando Hannah Arendt.

Na introdução de Em busca da política, Zygmunt Bauman já adiantara que

"[...] todo o argumento deste livro é a ideia de que a liberdade individual só pode ser produto do trabalho coletivo (só pode ser assegurada e garantida coletivamente). Caminhamos, porém, hoje, rumo à privatização dos meios de garantir/assegurar/firmar a liberdade individual - e se isso é uma terapia para os males atuais, é um tratamento fadado a produzir doenças iatrogênicas dos tipos mais sinistros e atrozes (destacando-se a pobreza em massa, a superfluidade social e o medo ambiente). Para tornar ainda mais complexas as agruras atuais e as perspectivas de solucioná-las, vivemos também uma época de privatização da utopia e dos modelos do bem (com modelos de 'boa vida' expulsos e eliminados do modelo de boa sociedade). A arte de reiventar os problemas pessoais sob a forma de questões de ordem pública tende a se definir de modo que torna excessivamente difícil 'agrupá-los' e condensá-los numa força política. O argumento deste livro é uma luta (reconhecidamente inconclusiva) para tornar de novo possível a tradução".

É possível traduzir a preocupação com a forma do corpo - reitero, aquela motivada unicamente pela noção furada de "padrão de beleza" e não por razões médicas - numa questão de ordem pública, fazer dela uma força política? Não acho provável. Visar a "boa" forma não me parece um bom caminho para desenvolver um modelo de boa sociedade.

Na próxima semana falo sobre... comida. Mas a partir das reflexões de Walter Benjamin.

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O(a) eventual leitor(a) talvez esteja informado(a) sobre um incidente lamentável envolvendo o escritor Raduan Nassar e o Ministro da Cultura do ilegítimo (des)governo atual. Dei uma opinião sobre o assunto no meu outro blog, o Colonized? (em inglês). Caso tenha interesse, fique à vontade para conferir. Mas o melhor texto que li até agora, tratando desse desrespeito absurdo com o autor de Lavoura Arcaica e Um copo de cólera, foi o do sociólogo Rafael Alves, que compareceu à cerimônia de entrega do Prêmio Camões (confira aqui).

¹ BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2000 [Tradução de Marcus Penchel]

BG de Hoje

O rock que vai direto ao ponto, sem firulas, sempre terá o seu lugar, penso eu. É o caso da banda RIVAL SONS. As boas músicas dos caras (por exemplo, Open my eyes) sempre trazem um riff de guitarra como a essência da canção, lembrando as composições mais clássicas do gênero. É pra bater palma de pé!