terça-feira, 1 de setembro de 2015

Campo Geral: uma história que se lê para ficar triste


"Os outros têm uma espécie de cachorro farejador, dentro de cada um, eles mesmos não sabem. Isso feito um cachorro que eles têm dentro deles, é que fareja, todo o tempo, se a gente está mole, está sujo ou está ruim, ou errado... As pessôas, mesmas, não sabem. Mas, então, elas ficam assim com uma precisão de judiar da gente..."


Fala do Dito, personagem de Campo Geral, de João Guimarães Rosa.

 
 
O ensaísta e historiador Alberto da Costa e Silva observou, com acerto, que "poucos, pouquíssimos escritores souberam tão bem captar as iluminações da meninice quanto Guimarães Rosa. Os seus meninos são tão reais, e tão meninos, que cada um de nós neles revê suas saudades" *.

De fato, alguns dos mais inesquecíveis personagens do universo rosiano (ou roseano, como queiram) são crianças: lembro, por exemplo, do (simplesmente assim chamado) Menino, do conto As margens da alegria, ou a Nhinhinha, encantada criatura presente em A menina de lá, ambos os textos integrando o volume Primeiras estórias. Antes destes, porém, há ainda o Tiãozinho, guia de um carro puxado por sábios bovinos em Conversa de bois (de Sagarana). E, claro, há também Miguilim, protagonista da extraordinária novela Campo Geral**.

Só que quando leio (e releio) esta última história, não é saudade o que sinto, mas sim uma grande tristeza. E é justamente a sua tristeza aquilo que, na condição de leitor, busco, pois as obras de arte verdadeiras devem provocar em cada um de nós diferentes matizes de sentimentos e é isso que as torna, ao lado de suas qualidades técnicas e estilísticas, grandiosas.

Cercado por um ambiente tomado pela brutalidade, representada principalmente pela figura paterna, Miguilim estava sempre "receando os desatinos das pessoas grandes". Ao perguntar para o irmão Dito (que, embora mais novo que ele, era possuidor de maior sabedoria) se o considerava um "bobo de verdade", recebe uma sublime resposta: "É não, Miguilim, de jeito nenhum. Isso mesmo que não é. Você tem o juízo por outros lados...". Parecido com a mãe, sonhador, ficava "todo olhando para a tristeza".

Sem saber ler ou escrever, Miguilim gosta de inventar histórias. Criança dotada de uma sensibilidade ímpar, com um modo bem peculiar de reagir ao mundo, o personagem tem aversão por todos os elementos que possam transtornar seu ensimesmamento:

"Porque a alma dele temia os gritos. No sujo lamoso do chiqueiro, os porcos gritavam, por gordos demais. Todo grito, sobre ser, se estraçalhava, estragava, de dentro de algum macio miolo - era a começação de desconhecidas tristezas. O quirquincho de um tatú caçado. O afurôo dos cachorros, estrepolindo com o tatú em buraco".

Mas ele é apenas uma criança e, como lemos em certa altura da narrativa, "ser menino, a gente não valia para querer mandar coisa nenhuma". Ele sofre e não há nada que o leitor possa fazer; ambos partilhando a mesma triste impotência.

Quando li Campo Geral pela primeira vez, há muitos anos, foi um dilema ético vivenciado por Miguilim aquilo que mais atraiu minha atenção. Entregar ou não o bilhete escrito por Tio Terêz para a sua mãe: o menino fica agoniado por causa da difícil decisão e não recebe dos outros personagens a quem recorre nenhuma orientação satisfatória. É sem dúvida um momento fundamental do livro (e provavelmente escreverei sobre isso noutra ocasião), mas, após várias releituras, percebo hoje que sempre foi a figura mesma do protagonista, com a sua mistura de fragilidade e resistência, a razão do meu interesse e afeto por esse livro.

Apesar de irradiar esperança em suas últimas cenas, nunca conseguirei ler Campo Geral com o espírito leve. E é bom que seja assim.

Na próxima semana, volto a falar de filosofia, quando escreverei sobre Blaise Pascal.
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* Essa observação foi retirada de Estas Primeiras estórias, pequeno ensaio que constitui um dos prefácios da 50ª edição do livro Primeiras estórias, de João Guimarães Rosa, publicada pela Ediouro em 2011.

** ROSA, João Guimarães. Campo Geral. In: _________. Manuelzão e Miguilim: (Corpo de Baile). 11 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 17-152 (Não custa lembrar que Campo Geral, originalmente, integrava o livro Corpo de Baile, publicado pela primeira vez em 1956)

BG de Hoje

No começo da minha adolescência, a canção Luka, de SUZANNE VEGA, era um tremendo sucesso radiofônico. Gostava da canção - como permaneço gostando até hoje - sobretudo pela interpretação doce da cantora norte-americana. Só mais tarde fui compreender a amargura de sua letra, tratando de abuso infantil e do nosso comportamento omisso, muitas vezes, em relação ao problema.