quarta-feira, 16 de setembro de 2015

A submissão epistemológica de Blaise Pascal



Um modo bastante corriqueiro de realizar a exegese de um texto filosófico canônico é interpretá-lo levando em consideração dados extraídos da biografia de seu autor. Para ser franco, não gosto desse expediente, pois, em muitos casos, a vida pessoal de um filósofo não ajuda a explicar sua obra. Entretanto, no caso de Blaise Pascal, a coisa muda de figura.

Devo admitir, entretanto, que, não sendo um estudioso particularmente interessado na obra pascalina, conheço apenas, de forma superficial, alguns fatos relacionados à sua biografia. Dessa maneira, prosseguirei, valendo-me somente das mais difundidas informações sobre a vida do filósofo francês.

Como se sabe, Blaise Pascal morreu antes dos 40 (1623-1662). Seus últimos anos foram bem penosos: a saúde, frágil desde a infância, esvaiu-se paulatinamente em razão das doenças constantes, incapacitando-o até mesmo para a escrita (diversos trechos de seu célebre trabalho póstumo - Pensamentos - foram ditados a terceiros). Mesmo sendo filho de um alto funcionário da burocracia estatal e não tendo que trabalhar para se sustentar, Pascal deve ter experimentado o seu quinhão de sofrimento. Mas isso não o transformaria num santo, ainda que a irmã do filósofo, Gilberte Périer, tenha tentado algo nesse sentido.

Publicada em 1684, A vida de Pascal passou a ser anexada a muitas edições ulteriores dos Pensamentos (como a que tenho em mãos agora*). A autora, como numa hagiografia**, confere ao irmão uma aura de devoção e magnanimidade sobre-humana:

"É verdade que nunca vi alma mais naturalmente superior a todas as manifestações humanas da corrupção natural; e não era somente em relação às injúrias que se mostrava tão insensível; era-o igualmente no concernente a tudo o que fere os outros homens e os apaixona. Tinha seguramente uma grande alma, mas sem ambição, não desejando nem grandeza nem poder e considerando mesmo que tudo isso comporta mais miséria do que felicidade. Só aspirava aos bens para distribuí-los aos outros e seu prazer residia na razão, na ordem, na justiça, em tudo, enfim, capaz de alimentar a alma. E só muito pouco nas coisas dos sentidos".

Esse texto um tanto mistificador deu, provavelmente, sua contribuição para que Pascal (pelo menos até o início do século XIX) fosse considerado um exemplo de (bom) caráter para muitos. Excluindo-se suas fantasias e exageros retóricos, porém, A vida de Pascal apresenta pelo menos um dado importante para meu propósito hoje. Segundo Gilberte Périer, antes do filósofo atingir os 24 anos,

"tendo-lhe a Providência divina dado a oportunidade de ler escritos devotos, Deus o iluminou de tal maneira com essa leitura que ele compreendeu perfeitamente que a religião cristã nos obriga a viver tão-somente para Deus e não ter outro objetivo senão Deus".

Ora, ainda adolescente, Blaise Pascal já era considerado um matemático genial. Sua contribuição no cálculo de probabilidades (denominado por ele de alae geometria - "geometria do acaso") é significativa. Dessa maneira, não é incômodo que um pensador com tal capacidade consagre seus esforços finais à pretensa salvação da alma num pretenso além-túmulo, afundando-se no atoleiro da religião?

Neste momento, não consigo deixar de especular: teria sido Pascal um indivíduo tão atormentado pelas agruras da existência a ponto de simular um recolhimento monástico e sujeitar seu intelecto às inconsistências da teologia? O fato de estar a todo momento sob ameaça da morte (na forma de uma ou mais doenças) foi assim determinante para o rumo tomado por suas reflexões filosóficas? Por ter adotado como divisa a renúncia aos prazeres e "a toda forma de superfluidades" - como acreditava Gilberte Périer -, o filósofo francês não encenara em vida (uma vida relativamente curta para nossos padrões atuais, diga-se de passagem) uma tragédia pessoal semelhante à perspectiva trágica de sua própria filosofia?

A maior parte dos Pensamentos me aborrece***, mas lê-los, tendo em mente os vestígios de infortúnio que atribuo ao ambiente e às circunstâncias em que a obra foi elaborada, torna tudo mais estimulante.

Ao contrário de Descartes, Pascal não admitia um ponto seguro e garantido, acessível ao ser humano, a partir do qual o conhecimento poderia ser estabelecido: noutras palavras, Pascal foi um dos primeiros filósofos modernos a questionar a supremacia absoluta da razão (embora ele próprio não deixasse de ser, a seu modo, um racionalista). A razão humana é limitada; aquilo que ela conhece será sempre limitado:

"Todo esse mundo visível é apenas o traço imperceptível na amplidão da natureza, que nem sequer nos é dado conhecer mesmo de um modo vago. Por mais que ampliemos as nossas concepções e as projetemos além dos espaços imagináveis, concebemos tão-somente átomos em comparação com a realidade das coisas. Esta é uma esfera infinita cujo centro se encontra em toda parte e cuja circunferência não se acha em nenhuma".

De acordo com o filósofo, à ausência de "uma plataforma firme e uma base última e permanente" sobre a qual se possa erguer o conhecimento junta-se o fato de "[as coisas] serem simples em si, enquanto nós somos compostos por duas naturezas antagônicas e de gêneros diversos, alma e corpo", completando nossa incapacidade de conhecer (e aqui estamos diante do velho dualismo que sustenta toda uma concepção metafísica da existência).

Se somos - segundo o autor de Pensamentos, OK? - "infinitamente incapaz[es] de compreender os extremos" e permanece vedado a nós "tanto o fim das coisas como o seu princípio", fechados ambos "num segredo impenetrável", o que nos resta fazer? Buscar a Deus por intermédio de Jesus Cristo, responderia Pascal, para, desse modo, aplacar "a doença principal do homem": a curiosidade.

Pascal defendia o preceito do Deus absconditus, ou seja, um ser divino "infinitamente incompreensível, pois, não tendo partes nem limites, não tem nenhuma relação conosco". Mas como se sabe que ele existe? Não se pode determiná-lo pela razão. É preciso então recorrer à fé para aceitá-lo. E o que é a fé? "É o coração que sente Deus, e não a razão. Eis o que é a fé: Deus sensível ao coração, não a razão".

Há várias menções ao coração no texto do filósofo francês (inclusive na conhecidíssima frase "O coração tem suas razões, que a razão não conhece: percebe-se isso em mil coisas"). Sendo a razão insuficiente para o conhecimento total das coisas do mundo, Pascal - e nesse caso, acertando ao mesmo tempo em que erra - torna relevantes a intuição e as emoções no conjunto das tentativas de entendimento humano. É por esse motivo que ele afirma: "Conhecemos a verdade não só pela razão mas também pelo coração".

A solução apresentada por Pascal para solucionar a incapacidade humana de conhecer é (para usar a expressão consagrada por Kierkegaard) dar um salto enorme: submeter o escrutínio racional à fé religiosa, o que resulta na paradoxal sentença: "Submissão e uso da razão, eis em que consiste o cristianismo".

Nem preciso dizer que acho essa solução desprezível. Não obstante, olho com certa simpatia para esse pensador angustiado.
__________
* PASCAL, Blaise. Pensamentos. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [Tradução de Sérgio Milliet] (Coleção Os pensadores)

** Vale lembrar que "vidas de santos" eram material de leitura muito difundido na Europa desde o final do século XVI até a primeira metade do século XIX.

*** Há, contudo, trechos expondo a antropologia filosófica de Pascal pelos quais tenho grande interesse e escreverei sobre eles noutra oportunidade.

BG de Hoje

Downbound train (BRUCE SPRINGSTEEN) - que em bom "mineirês" poderia ser traduzida como "Trem despinguelado" - narra a história de um cara comum, cuja vida é uma sucessão de pequenas e grandes infelicidades. E então ele se pergunta: "Don't you feel like you're a rider on a downbound train?" Eu me sinto assim quase o tempo todo.