quinta-feira, 24 de julho de 2014

Arrepender-se por que, Lady Macbeth? (II)


Após a consumação do assassinato do Rei Duncan (cena 2, segundo ato), Lady Macbeth diz: "Minhas mãos estão da cor das tuas, mas sinto vergonha de estar com um coração tão branco..." *. Penso haver duas interpretações cabíveis numa leitura imediata: 1) mãos vermelhas pelo sangue da vítima/coração imaculado/sem arrependimento; e 2) vergonha da ausência de remorso/possibilidade de estar arrependida. Vamos agora para o terceiro ato (cena 2). Macbeth e a esposa (agora na condição de rainha) temem que Banquo, de alguma forma, interrompa suas pretensões. Ela fala a si mesma: "Nada se ganha, ao contrário, tudo se perde, quando nosso desejo se realiza sem satisfazer-nos. Mais vale ser a vítima do que viver com o crime numa alegria cheia de inquietudes!". É razoável considerar o excerto anterior como outro exemplo de arrependimento. De todo modo, essas são as únicas passagens da peça a indicar tal estado de espírito por parte da personagem antes de seu delírio sonambúlico, na presença do médico e da dama de companhia, relatado no último ato (cena 1). Torna-se, para o leitor (pelo menos no meu caso), pouco aceitável que alguém com tamanha tenacidade, registrada em diversas outras passagens do texto, possa, de um momento para outro, morrer atormentada por uma "crise de consciência".

Na postagem anterior, eu disse que uma argumentação de cunho moral (do tipo "ora, é natural que ela se arrependa: afinal, cometeu um crime hediondo") não vem ao caso aqui. É possível, certamente, conjecturar que Shakespeare, escrevendo para um público amplo e heterogêneo, recorreria a certas soluções convencionais dentro das narrativas, por mais genial que possa ter sido. Assim sendo (e indo ao encontro das expectativas do público) o crime precisaria ser castigado e, se possível, com algum sofrimento infligido ao vilão. Mas - e aí vem minha especulação - Lady Macbeth não seria ainda mais sensacional do que já é se permanecesse até o final tão obstinada e segura de si quanto se mostrara ao longo de quase toda a peça? Afinal, sua obstinação e autocontrole são indubitavelmente notáveis. E tudo não passa de um construção ficcional mesmo...

Sendo assim, por que se arrepender, Lady Macbeth?

* SHAKESPEARE, William. Macbeth. São Paulo: Abril Cultural, 1981 [Tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes; com notas e dados históricos de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros]

BG de Hoje

Sou pessimista quase em tempo integral - disse quase. Nas pouquíssimas vezes em que o otimismo aparece, lembro de algumas canções bem específicas. Constant craving, de K. D. LANG é uma desssas.

"Even through the darkest phase
Be it thick or thin
Always someone marches brave
Here beneath my skin"