quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

A fantasia etnográfica das "Viagens de Gulliver" (1)


Como quase toda sátira literária, o alvo das Viagens de Gulliver, do escritor irlandês Jonathan Swift, era a sociedade de seu tempo, sobretudo no que se refere às práticas políticas dos britânicos no século XVIII. Lançado em 1726, o livro, estranhamente, foi adaptado, em períodos posteriores, para o público infanto-juvenil, talvez em virtude do apelo a este tipo de leitor representado pelos lugares fantasiosos visitados pelo protagonista-narrador.

E é uma obra que se lê com bom ritmo. Em entrevista para a revista Língua Portuguesa* (disponível aqui), o autor da tradução nacional mais recente das Viagens..., Paulo Henriques Britto, afirma que "o estilo de Swift é limpo, direto, clássico no melhor sentido do termo". Ainda não disponho dessa tradução (o trabalho que sempre conheci é o de Octavio Mendes Cajado**), mas, de todo modo, há pontos na entrevista citada acima que gostaria de destacar, pois valem uma breve discussão, para além da especificidade do texto de Jonathan Swift.

Quando perguntado se "o tradutor pode 'adaptar' o original", para não chocar ou ofender as convicções ou suscetibilidades do leitor, já que nas Viagens de Gulliver, por exemplo, há muita escatologia, Paulo Henriques Britto responde: "é absurdo querer expurgar obras antigas porque violam nossa sensibilidade de agora"

E acrescenta:

"O mais terrível nessa atitude, além da ignorância e da total falta de senso histórico que ela revela - como se pode exigir que pessoas de cem, duzentos, mil anos tivessem a nossa sensibilidade? - é o pressuposto que está por trás dela: as pessoas só devem ler o que inspire bons exemplos, expresse ideias consideradas sãs e elevadas pela sensibilidade liberal do século 21. É neovitorianismo. Uma boa formação intelectual e moral exige conhecimento de toda a experiência humana, mesmo em seus aspectos menos nobres [...] Quem se escandaliza com tais coisas pode e deve fugir da literatura: ninguém deve ser obrigado a gostar de nada".

Britto critica a atitude comum hoje em dia - não obstante, problemática - de tentar suavizar traços polêmicos ou desagradáveis de determinados escritores ou, quando isso não é possível, a adoção de formas um tanto puritanas de reprovação sobre estes. Mas, além disso, enaltece uma característica fascinante da Literatura: muito mais do que um passatempo intelectual, a arte literária é também uma forma de conhecimento sobre a existência dos seres humanos. NOTA: recomendo ao(à) leitor(a) a leitura de toda a entrevista publicada. Há opiniões interessantes sobre o ofício de traduzir.

Voltemos, entretanto, à obra de Swift. Em Viagens de Gulliver, como acima foi dito, narram-se situações que não costumam estar associadas à ideia beletrista do escrever. Isso acontece, penso eu, porque mesmo falando de nações e povos imaginários, havia a intenção do autor de incluir "flashes" de realidade em sua narrativa, mantendo um pacto de verossimilhança com o leitor. Essa seria a função da escatologia na obra (sem duplo sentido). Discutirei isso melhor na próxima semana e apresentarei uma justificativa para o título desta nova série de postagens. Até lá!
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* Tradução de gente grande. Língua Portuguesa, São Paulo, Ano 5, n. 65, mar. 2011, p. 10-13 (Editora Segmento) [entrevista concedida a Gabriel Jareta]

**  SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [tradução de Octavio Mendes Cajado]

BG de Hoje

Um dos grandes intelectuais brasileiros, na minha opinião, é NEI LOPES. Escritor e pesquisador, ajuda a compreender melhor elementos da cultura nacional, seja o samba, seja o nosso idioma. Mas ele é mais conhecido por seu trabalho como compositor. Uma das canções dele de que mais gosto é Tempo de Don Don. Letra sensacional, falando do efeito da passagem do tempo sobre a linguagem cotidiana. Infelizmente, não achei no Youtube um vídeo com o Zeca Pagodinho cantando essa música (é muito bom). Abaixo, deixo dois outros, então: com Dudu Nobre interpretando a canção na letra original; e um outro, no qual o mesmo artista, agora acompanhado do próprio Nei Lopes, canta uma versão "upgrade" de Tempo de Don Don. (link para vídeo 1) (link para vídeo 2)