sexta-feira, 15 de abril de 2011

A Literatura como direito


"Ler literatura é uma forma de acesso a esse patrimônio [artístico, cultural e histórico representado pelas próprias obras literárias], confirma que está sendo reconhecido e respeitado o direito de cada cidadão a essa herança, atesta que não estamos nos deixando roubar. E nos insere numa família de leitores, com quem podemos trocar ideias e experiências e nos projetar para o futuro. Aceitar que numa sociedade podemos ter gente que nunca vai ter a menor oportunidade de ter acesso a uma leitura literária é uma forma perversa de compactuarmos com a exclusão. Não combina com quem pretende ser democrático".

Ana Maria Machado*

É quase impossível, para os leitores - no sentido pleno e visceral dessa palavra -,  deixar de falar sobre aquilo que leem. Não nos contemos. Estamos sempre em busca de aliados, outros que, como nós, indiquem seus périplos de leitura, tragam suas impressões e preferências, ofereçam sua cultura livresca acumulada para ser objeto de intercâmbio e com isso chegarmos a... Chegarmos a quê? Não me importa agora.

Pensando nos dissabores e percalços que fazem parte do dia-a-dia na escola pública onde trabalho, decidi reler alguns textos cujas clareza e serenidade  (não obstante seu "chamado à ação") servem de estímulo para não esmorecer. Falemos deles.

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Há mais de dez anos convivo com este artigo. Sempre volto às suas páginas com satisfação. Em Para que serve a literatura infantil? ** (disponível aqui), Graça Paulino manda um elegante recado aos utilitaristas rasteiros (e - que lástima! - como o ambiente escolar está infestado deles...).

"Quando pais ou professores do Ensino Fundamental perguntam 'afinal, que finalidade a leitura dessas historinhas pelas crianças pode ter?', as respostas não são simples, nem diretas".

Para os defensores da leitura literária, deter-se num bom livro, artisticamente elaborado, "não é perda de tempo em nossa sociedade de hoje, em que a vida se faz de enigmas e de rápidas transformações. A arte nos permite conhecer melhor o existente, ao percebermos outras possibilidades de existir".

Mas, "diriam os 'práticos', arte para quê? É perda de tempo, é 'frescura' de gente desocupada".

Essa objeção dos "práticos" é poderosa, fora (e, infelizmente, também dentro) das escolas. Há algo a fazer?

"Imagino-me " - escreve Graça Paulino - "como professora, lendo esse poema [Ismália, de Alphonsus de Guimaraens, citado no artigo], junto com meus alunos de 4ª série. Apenas ler, e só continuar com o assunto se requisitada. Ridícula? Sinceramente, não sei. Quatro, com pessimismo, ou 14, na melhor das hipóteses, dos meus 40 alunos, participariam do encanto. Mas, se no início de cada aula, nós ( porque com o tempo surgiriam outros leitores de poemas, além de mim ), se gastássemos dois minutos para ler um poema, talvez no fim do ano, seriam mais quatro a prestar atenção".

Porém, não caberia à escola enfatizar a "leitura funcional, que se não dá dinheiro, pelo menos ajuda o cidadão-leitor a defender condições um pouco mais dignas de sobrevivência?"

A própria autora responde:

"Ora, funcional, na sociedade de amanhã [...] é impensável hoje, como se fosse algo já pronto... Na rapidez com que a tecnologia se move, corrermos atrás dela é inútil. Mais 'funcional', hoje, talvez seja mesmo esse despertar da sensibilidade para aquilo nunca visto ou previsto".

E, mais à frente, acrescenta: "O futuro? Nem a Deus nem ao computador pertence com exclusividade".

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A partir de uma associação aparentemente inusitada (direitos humanos e literatura) Antonio Candido elaborou uma palestra essencial (e um dos seus escritos que mais me marcou). Em O direito à literatura *** (disponível aqui), o crítico literário faz a paradoxal observação (nem por isso menos verificável): "Todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização".

Mesmo reconhecendo que "um traço sinistro do nosso tempo é saber que é possível a solução de tantos problemas e no entanto não se empenhar nela", o autor prossegue otimista, afirmando que "somos a primeira era da história em que teoricamente é possível entrever uma solução para as grandes desarmonias que geram a injustiça [...]"

A fruição da arte deve ser arrolada na lista dos "bens fundamentais" aos quais todos devem ter direito? Ler Literatura pode se equivaler, de alguma forma, àquelas outras "necessidades profundas do ser humano", àquelas "necessidades que não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desorganização pessoal, ou pelo menos de frustração mutiladora?"

Para Candido, "assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura [e a arte em geral]", pois "a literatura é o sonho acordado das civilizações".

Segundo ele, "toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de objeto construído; e é grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção".

O fecho da palestra é quase uma convocação:

"Portanto, a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis da cultura. A distinção entre cultura popular e cultura erudita não deve servir para justificar e manter uma separação iníqua, como se do ponto de vista cultural a sociedade fosse dividida em esferas incomunicáveis, dando lugar a dois tipos incomunicáveis de fruidores. Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável".

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Recuperei o fôlego. Mas estou certo de que a acomodação e o absenteísmo de alguns colegas(?), além da agressividade e da indiferença desrespeitosa de um número significativo de estudantes vão esgotá-lo mais rápido do que eu desejaria.

* MACHADO, Ana Maria. Literatura - o direito a uma herança. In: __________. Texturas: sobre leitura e escritos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 126-137

** PAULINO, Graça. Para que serve a literatura infantil? Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 5, n. 25, jan./fev. 1999, p. 51-57

*** CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In:__________. Vários escritos. 3 ed. rev. ampl. São Paulo: Duas Cidades, 1995 [a palestra foi proferida em 1988]

BG de Hoje

DAVE MATTHEWS, VINCE GILL E STING, num tributo aos Beatles, cantando I saw her standing there.