terça-feira, 3 de novembro de 2009

Nocautes (2)

SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA - João Guimarães Rosa

Ao falar do universo ficcional de Dalton Trevisan, observei que suas personagens eram, na totalidade, seres insignificantes, enredados nas pequenas tragédias e comédias da vida (e isso não é um defeito). No livro Primeiras estórias *, de João Guimarães Rosa - do qual proveio o conto Sorôco, sua mãe, sua filha - estamos também diante de criaturas sem importância. As diferenças são grandes, porém.

A primeira, mais óbvia, diz respeito à linguagem e à forma de narrar. Trevisan usa (e abusa) dos lugares-comuns e da repetição de situações-clichês. E o faz propositalmente - daí sua habilidade - como a nos mostrar que não há escapatória - nem sequer através da escrita - de nossa pequenez e boçalidade intrínsecas. Guimarães Rosa, bem ao contrário, é um renovador do idioma, alguém que inventou um modo completamente inédito de dizer as coisas literariamente. Além do mais, há sempre algo de épico, heroico ou transcendente em suas narrativas.

A segunda diferença entre o escritor paranaense e o mineiro está nos modos distintos como ambos veem a "desimportância" de suas personagens. Trevisan não as faz brilhar; a opacidade delas se instala até nos nomes que lhes são dados, repetidos com frequência em mais de um conto. Rosa, por sua vez, apesar de incluir mendigos, malucos, trabalhadores de enxada e crianças pobres em seus textos, trata-os com nobreza.

Sorôco, sua mãe, sua filha é das mais tocantes narrativas que conheço. Fala de muitas coisas, mas sobretudo da afeição e da dificuldade que temos em externalizar esse sentimento tão maravilhoso. Para tanto, o narrador lança mão de uma desatinada cantiga de duas mulheres loucas - fantasticamente definida assim por Guimarães Rosa:

"[...] aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois".

Em determinado ponto, o narrador nos diz que "foi um caso sem comparação". Eu diria, agora, que é um texto sem comparação.

* ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008