sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Algumas notas sobre educação (4)



Se, como foi dito anteriormente, o método pelo qual se aprende é o do acaso e os "explicadores" - os professores existentes hoje e sempre - pouco interferem nesse aprendizado, o que resta aos profissionais do ensino?

Antes de tentar responder a essa dificílima pergunta, cabe salientar que O mestre ignorante *, livro sobre o qual estamos falando, não pretende ser um "guia" para novos professores "criativos" e "inovadores". É, antes de tudo, um alerta, um aviso para que não acreditemos piamente (mesmo com o coração cheio de "boas intenções") na neutralidade ou no "progressismo" dos sistemas educacionais. Jacques Rancière nos mostra que Jacotot, o pedagogo "louco", ainda no século XIX, prevenira: "a distância que a escola e a sociedade pedagogizada pretendem reduzir é aquela de que vivem e que não cessam de reproduzir".

Voltemos à pergunta do início, porém e vejamos como Rancière responderia a ela:

"O homem - e a criança, em particular - pode ter necessidade de um mestre, quando sua vontade não é suficientemente forte para colocá-la e mantê-la em seu caminho. Mas a sujeição é puramente de vontade a vontade. Ela se torna embrutecedora quando liga uma inteligência a uma outra inteligência. No ato de ensinar e de aprender, há duas vontades e duas inteligências. Chamar-se-á embrutecimento à sua coincidência [...] Chamar-se-á emancipação à diferença conhecida e mantida entre as duas relações, o ato de uma inteligência que não obedece senão a ela mesma, ainda que a vontade obedeça a uma outra vontade".

Rancière (e Jacotot) falam sempre da vontade e de sua importância para o aprendizado. Juntos eles afirmam que "o homem é uma vontade servida por uma inteligência". Ao apontar o "segredo" do Ensino Universal, Jacques Rancière escreve:

"É também esse o segredo daqueles que são chamados gênios: o trabalho incessante para dobrar o corpo aos hábitos necessários, para ordenar à inteligência novas ideias, novas maneiras de exprimi-las; para refazer intencionalmente o que o acaso produziu e transformar circunstâncias infelizes em boas ocasiões de sucesso".

Ou seja, uma inteligência emancipada nunca é preguiçosa. Achou o último adjetivo ridículo ou fora de lugar? Mas é o próprio filósofo francês que fala a respeito de preguiça!:

"Em suma, por mais que isso incomode aos gênios, o modo mais frequente de exercício da inteligência é a repetição. E a repetição é enfadonha. O primeiro vício é a preguiça. É mais fácil se ausentar, ver pela metade, dizer o que não se vê, dizer o que se acredita ver. Assim se formam frases de ausência, os logo que não traduzem qualquer aventura do espírito. ' Eu não posso ' é o exemplo dessas frases de ausência.

E o que tudo isso tem a ver com nossa atual "crise" do ensino, particularmente público? Arrisco algumas respostas. Provisórias e insuficientes - não estou bem certo da verdade delas.

1) Nossos estudantes, dentro de uma instituição escolar que não tem para eles nenhuma serventia, valor ou significado, estão longe, muito longe de demonstrar essa vontade preconizada em O mestre ignorante.

2)
Nossos professores, dentro de uma instituição escolar que não os reconhece como seu "insumo" mais valioso, não estão em condições de emancipar nenhuma inteligência.

3) Nossas sociedades, cada vez mais dissimuladas em suas relações com a instituição escolar, têm outros interesses muito mais pragmáticos do que emancipar inteligências. Como escreve Rancière, "jamais um partido, um governo, um exército, uma escola ou uma instituição emancipará uma única pessoa".


* RANCIÉRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002 [ tradução de Lilian do Valle ]