segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Não há dinheiro que seja suficiente?

Estava assistindo, há uns dias, um vídeo no Youtube sobre formatos de narrativas humorísticas e um dos comentários chamou atenção para algo que eu não estava mesmo me dando conta. Mais ou menos, dizia o seguinte:  "Frequentemente nos esquecemos que Bill Watterson ainda está vivo.  Calvin e Haroldo  surgiram há 40 anos; não é uma coisa tão antiga assim". 

O quadrinista norte-americano completou 67 anos em 2025. Não é possível saber muito mais a respeito do que anda fazendo ou de seu estado de saúde porque Watterson, a despeito de ter se notabilizado por  tirinhas publicadas em jornais, sempre foi arisco em relação à imprensa e à mídia em geral. Após uma pausa de quase três décadas, ele lançou  em 2023  Os mistérios,  trabalho em parceria com outro ilustrador, John Kascht, uma graphic novel bem diferente de sua criação mais conhecida. Depois disso, voltou ao recolhimento na pequena cidade em Ohio onde vive.

Assim como um montão de gente mundo afora, adoro  Calvin e Haroldo  (pena que, na adaptação para o português brasileiro, o tigre perdeu o nome  Hobbes ). Poucas vezes um trabalho quadrinístico conseguiu atingir tal apuro, em proporções iguais, tanto no texto quanto na imagem (o desenho do Calvin correndo ou as caras de irritação de seus pais estão entre as coisas mais legais que já vi em quadrinhos). O escritor Nevin Martell, autor de um livro sobre a tirinha, não hesita em chamá-la de "uma das maiores obras da cultura pop/popular do século XX". Concordo inteiramente.


Dias atrás estava lendo  Calvin e Haroldo: o livro do décimo aniversário  (Editora Conrad, 2013). Nessa coletânea, além da reprodução de diversas tirinhas feitas em épocas diferentes, encontramos vários comentários de Bill Watterson  sobre algumas delas e também observações suas sobre a composição dos quadrinhos, seu processo de criação e outros assuntos. É nessa coletânea também que o autor explica por que, a despeito do êxito nas páginas dos jornais e nos livros, nunca permitiu que seus personagens aparecessem em mercadorias variadas (peças de roupa, brinquedos, caixas de cereais, etc.) ou fossem adaptados para a televisão ou o cinema. Escreve ele: "Eu sou provavelmente o único quadrinista do mundo que lamenta o sucesso alcançado por seu trabalho. A maioria aceitaria de bom grado a exposição, o dinheiro e o prestígio associados ao licenciamento".
 
Qual o problema do licenciamento, de acordo com o artista?
 
"Quando o quadrinista licencia seus personagens, sua voz é cooptada pelos interesses de fabricantes de brinquedos, produtores de programas televisivos e publicitários. A função do quadrinista deixa de ser a de um pensador original - sua tarefa passa ser a manutenção de seus personagens como mercadorias lucrativas. Os personagens em si se tornam 'celebridades', vinculando sua imagem a empresas e produtos e evitam qualquer atitude controversa, dizendo apenas aquilo que é determinado por quem os paga. Quando chega a esse ponto, a tira perde sua alma. Com sua integridade perdida, esses quadrinhos perdem seu significado mais profundo".
 
Não sei você, eventual leitor(a), mas considero o posicionamento de Watterson muito surpreendente. E também algo para se admirar.
 
Uma imensidão de pessoas, principalmente nos EUA, país do quadrinista, crê que o acúmulo de recursos financeiros e a busca por lucro constante são a finalidade primordial, propósitos naturais e inquestionáveis, de qualquer ser humano na face da Terra. Essa crença, nem precisaria dizer, é essencial para a, digamos, doutrina  que rege as vidas de grande parte da população mundial há séculos. Decidir-se por não seguir o caminho do  dinheiro-acima-de-tudo  é quase sempre visto como coisa de maluco.
 
Estamos aqui falando de quadrinhos, uma forma de arte - assim como a fotografia e o cinema - nascida na era da reprodutibilidade técnica, para usarmos os temos de Walter Benjamin. Uma arte, portanto, endereçada para o consumo das massas. Colocada numa simples página de jornal (pensando no suporte tradicional da tirinha de quadrinhos), objeto do cotidiano facilmente descartável, muitos poderiam dizer, sem qualquer hesitação, que não haveria mesmo nenhum tipo de  aura  a ser postulada. O quadrinista, porém, está aqui defendendo sua obra como manifestação artística legítima. Não seria muita pretensão dele?,  alguém pode estar se perguntando.
 
Talvez por não aparentar um certo esnobismo que costuma revestir as artes plásticas, a música erudita e a literatura de vanguarda, os quadrinhos ainda têm dificuldade para superar a pecha de criação para consumo ligeiro e muitos enxergam a rápida comercialização como seu único valor. Talvez também por isso, muitos quadrinistas nunca viram problema em negociar a exploração comercial mais ampla de seus personagens; afinal, seria só mais um desdobramento (o mais lucrativo, aliás) de seu trabalho : Jim Davis, por exemplo, deve ter ganhado um bom dinheiro com os produtos licenciados de  Garfield  e até  Peanuts, de Charles Schulz (um dos trabalhos que influenciou Watterson, segundo ele próprio), estampa diversos produtos (anteontem vi uma moça segurando um caderno cuja capa mostrava um desenho de Snoopy e do Charlie Brown).
 
"Em uma era em que tudo é transformado em mercadoria, essas minhas objeções ao licenciamento não encontram muitos defensores", lê-se no livro que mencionei acima. Na recusa a tratar seu trabalho unicamente como objeto de comércio, contraria-se a lógica da sociedade de mercado, postura muito rara de se ver, tão acostumados estamos a não tentar outro caminho que não seja o do  dinheiro-acima-de-tudo
 
Há também o amor-próprio derivado da condição de artista: "Quando uma coisa divertida e mágica é transformada em mercadoria, o mundo fictício criado na tira só tem a perder. Calvin e Haroldo foram criados para ser personagens de uma tira de quadrinhos, e é só isso que eu quero que eles sejam. É a única forma em que tudo se harmoniza conforme meu desejo", acrescentando mais à frente:
 
"Tenho muito orgulho do fato de escrever cada palavra, desenhar cada traço, aplicar cada cor das tiras dominicais e pintar eu mesmo todas as ilustrações que saem nos livros. A minha tira é uma empreitada solitária de baixa tecnologia, e é assim que eu quero que seja".
 
É muito difícil encontrar alguém que, diante da escolha entre uma montanha de grana e a observância de seus próprios padrões morais e de seu ideário estético, abra mão do enriquecimento. Watterson não é nenhum herói ou, por outro ângulo, também não é nenhuma vítima da ganância sistêmica (e pode ser inclusive uma pessoa detestável, não tenho como saber), mas acho sensacional a sua resolução: parar de produzir sua tirinha, no auge do sucesso, resistindo aos apelos mercadológicos. Como ele mesmo escreveu: "Quem pensa que pode ser levado a sério como artista usando os protagonistas de suas tiras para vender cuecas está claramente se iludindo".
 
Voltando a essa discussão do estatuto dos quadrinhos como expressão artística, lembro-me de uma declaração de Quino, proferida há mais de dez anos: "não acredito que Mafalda ultrapasse as fronteiras da história e se transforme em algo parecido com a música de Mozart". OK, é possível isso não acontecer, mas não creio que, por essa razão, suas tirinhas sejam mais "esvaziadas" de arte do que outras criações. O quadrinista e cartunista argentin, falecido em 2030, costumava dizer que a menininha contestadora e sagaz era só mais um desenho, avaliação que faz os muitos fãs da tirinha ficarem bem desgostosos. "Eu sou como um carpinteiro que fabrica um móvel" - disse ele - "e Mafalda é um móvel que fez sucesso, lindo, mas para mim continua sendo um móvel, e faço isto por amor à madeira em que trabalho".  Na primeira metade da década de 1970, Quino parou de inventar novas histórias de Mafalda (e de Manolito, Susanita e os outros personagens daquele conjunto) quando chegou a conclusão de que não havia nada mais a dizer (que fosse artisticamente relevante), sendo esse também um dos motivos que levou Bill Watterson a encerrar  Calvin e Haroldo  nos anos 1990. Consigo imaginar a insistência de editores ou de profissionais ligados a departamentos comerciais para que eles continuassem a produzir, mas no fim prevaleceu o zelo dos artistas.
 
. . . . . . . 
 
Não consigo deixar de ficar boquiaberto diante de certas cifras. A última turnê de Taylor Swift rendeu cerca de dois bilhões de dólares somente com a venda de ingressos. Enquanto isso, o catálogo com todas as canções de Bob Dylan foi vendido por "apenas" US$ 300 milhões. Deixando de lado o mundo dos artistas, na Índia, um país que está longe de ter uma população nadando em dinheiro em termos gerais, um megarricaço celebra um matrimônio com um custo de 18 milhões de dólares. Sou uma pessoa ingênua, mas vamos lá: é preciso tudo isso? Não se consegue viver confortavelmente com menos grana e ainda assim continuar sendo podre de rico? É tão indispensável assim gastar uma fortuna inacessível para mais de 98% da população mundial numa festa de casamento? 

Nunca se atinge uma quantia de dinheiro acumulado que se possa considerar suficiente? Será sempre assim: mais, mais, mais e mais?
 
Já escrevi noutras oportunidades que sou incapaz de sentir esperança em relação a qualquer coisa. Pensar sobre a decisão artística e profissional de Bill Watterson não altera essa disposição. Mas ajuda a aguentar um pouquinho mais dentro das trevas.

BG de Hoje

Lenny Kravitz gravou  Rock and Roll is Dead em 1995. Marilyn Manson lançou sua  Rock is Dead  em 1998. Uma criticando a superficialidade de alguns artistas, mais preocupados com a imagem do que com a música em si; a outra reclamando da apatia e do conformismo que dominaram o gênero em determinado momento. Para minha diversão, porém, sou muito mais o obituário da dupla TENACIOUS D.

 

Este blog entra em recesso a partir desta semana e, se não houver nenhum contratempo, retornará em fevereiro de 2026. Ao(à) eventual leitor(a), boas festas!

Nenhum comentário:

Postar um comentário