Felicidade, afinal, para quê? Essa pergunta ficou na minha cabeça por muitas horas após terminar a leitura de A trégua. A história do amor tardio ali contada (tardio pelo menos para uma das personagens) me chacoalhou um pouco, forçoso admitir, embora seu desfecho não fosse difícil de antecipar. Falaria sobre outra obra hoje, mas sinto que preciso me acertar com este livro de Mario Benedetti e com a emoção que senti.
Publicado originalmente em 1960, o romance é construído a partir do diário de Martín Santomé, ser ficcional que enfeixa as características de um tipo de protagonista bastante frequente na literatura moderna, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, ligado à progressiva urbanização dos espaços: o sujeito sem qualquer excepcionalidade, um funcionário sem destaque, a mediania personificada, apenas mais um na multidão.
De olho na aposentadoria que se aproxima, Santomé, viúvo há bastante tempo, pai de três filhos já adultos, acaba se apaixonando por uma mulher muito mais jovem, Laura Avellaneda, empregada recém-contratada e subordinada a ele no escritório comercial onde ambos trabalham em Montevidéu.
Antes de abrir o livro, eu tinha dois motivos para me indispor com ele. Como já escrevi aqui e noutras postagens, não costumo apreciar histórias de amor. Além disso, acho a forma diário um expediente meio preguiçoso dos escritores ao construir uma narrativa literária (sou obrigado a aceitar, contudo, que um de meus livros mais diletos - A náusea, de Sartre - foi feito nesse formato). A ficção apresentada como diário, porém, tem a vantagem de ser conduzida por uma voz narrativa em primeira pessoa propensa à sinceridade (aquela possível dentro uma história inventada, claro) e, em A trégua, assim como noutras composições similares, o mecanismo de identificação/afinidade entre narrador e leitor acaba se estabelecendo muito facilmente.
O protagonista é mordaz, mas nunca cruel ou isento de compaixão. Nem por isso deixa de mostrar-se um homem de seu tempo (chegando à meia-idade no intermédio do século passado), incapaz de emergir do machismo e da homofobia - a ironia é que tem um filho gay e, pela primeira vez, está aprendendo o valor do âmbito afetivo e sentimental de uma relação para além da crua atração física pela mulher amada.
Como seria de se esperar, é uma pessoa solitária, com uma vida desinteressante e banal, tendo como única atividade o trabalho - "essa espécie de constante martelar, ou de morfina, ou de gás tóxico" ¹. Antes de Avellaneda e ele começarem seu envolvimento (que o casal passa a chamar de Assunto ), lê-se no diário a certa altura:
"Quase todos os domingos, almoço e janto sozinho, e inevitavelmente fico melancólico, 'O que fiz da minha vida?' é uma pergunta que soa a Gardel ou a Suplemento Feminino ou a artigo do Reader's Digest. Hoje, domingo, sinto-me além do irrisório e posso me fazer perguntas desse tipo. Em minha história particular não se operaram mudanças irracionais, guinadas insólitas e repentinas".
Santomé sempre tivera "um leve mal-estar diante do pieguismo", mas não consegue deixar de se perguntar em determinado momento: "Por que será que o verdadeiro é sempre um pouco piegas?". Esse questionamento não é respondido: ele, entretanto, a cada dia, passa a compreender que não há como (e nem há necessidade de) fugir do sentimentalismo frente a essa paixão temporã, cuja verdade aceita: "Estou numa idade em que o tempo parece e é irrecuperável. Tenho de me agarrar desesperadamente a esta razoável ventura que veio me buscar e me encontrou".
Trata-se, como se vê, de uma época crucial na vida do personagem (e o leitor, quem sabe, pode estar também no mesmo barco):
"Hoje, em vários momentos do dia, pensei: 'Cinquenta anos', e minha alma despencou até o chão. Fiquei diante do espelho e não pude evitar um pouco de piedade, um pouco de comiseração por este tipo enrugado, de olhos fatigados, que nunca chegou nem chegará a nada. O mais trágico não é ser medíocre, mas inconsciente dessa mediocridade; o mais trágico é ser medíocre e saber que se é assim e não se conformar com esse destino que, por outro lado (isso é o pior), é de rigorosa justiça".
A esse sujeito "meio apagado mas inteligente", sem mais expectativas do que o desencargo da pós-aposentadoria, foi dada nova chance de experimentar a felicidade:
"Quando um indivíduo permanece muito tempo sozinho, quando se passam anos e anos sem que o diálogo vivificante e investigativo o estimule a levar essa modesta civilização da alma, que se chama lucidez, até as zonas mais intrincadas do instinto, até essas terras realmente virgens, inexploradas, dos desejos, dos sentimentos, das repulsas, quando essa solidão se transforma em rotina, ele vai perdendo inexoravelmente a capacidade de sentir-se sacudido, de sentir-se viver. Mas vem Avellaneda e faz perguntas, e, sobre as perguntas que ela me faz, eu me faço muitas mais, e então sim, agora sim, sinto-me vivo e sacudido".
"Fui até a cozinha, acendi o fogareiro e coloquei água para esquentar. Lá do quarto, ela me chamou. Levantara-se assim mesmo, embrulhada na manta, e estava junto à janela, vendo chover. Eu me aproximei, também olhei como chovia, e por alguns minutos não dissemos nada. De repente, tive consciência de que aquele momento, aquela fatia da cotidianidade, era o grau máximo de bem-estar, era a Ventura. Eu nunca havia sido tão plenamente feliz como naquele momento, mas tinha a aguda sensação de que nunca mais voltaria a sê-lo, pelo menos naquele grau, com aquela intensidade. O ápice é assim, claro que é assim. Além disso, tenho certeza de que o ápice é só um segundo, um breve segundo, um clarão instantâneo, e não há direito a prorrogações".
Aprendemos rapidamente (nós, os desgostosos) a dispensar a felicidade, a não contar com a felicidade. Não é só pelo fato de que ela tende a durar pouquíssimo. É principalmente por que ela pode nos ser tomada a qualquer momento, sem alertas ou avisos prévios.
Devemos continuar sem mais nada além de nossas rotinas incolores e vazias, às quais estamos tão acostumados.
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¹ Todas as citações de A trégua aqui reproduzidas foram extraídas da edição publicada em 2007 pela Objetiva, com tradução de Joana Angelica D'Avila Melo.
BG de Hoje
Repito: histórias de amor não costumam me atrair. Ano retrasado, no entanto, numa das minhas (muitas) noites de insônia, decidi assistir à série Wolf Like Me (disponível no Amazon Prime). Não estava muito interessado, a princípio, mas fui sendo fisgado progressivamente. Resultado: adorei a primeira temporada (não tenho como avaliar a segunda porque ainda estou na metade). Embora o sobrenatural exerça papel essencial na trama, a série trata sobretudo dos laços que podem surgir entre um casal formado por indivíduos angustiados, após sofrerem perdas amorosas pesadas. É um tanto sentimentaloide? Sim. Mas deu certo como entretenimento. Além disso, a produção fez um ótimo trabalho na trilha sonora. O maior exemplo foi o uso de Fortress, uma das melhores canções do QUEENS OF THE STONE AGE em momentos significativos.

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