sexta-feira, 29 de maio de 2020

Não vejo saída


[Postagem atualizada em 07/06/2020]

Você tem o hábito de utilizar um objeto (smartphone, notebook, ou mesmo uma peça de vestuário) até que ele esteja realmente sem condições de uso, evitando comprar outro similar, novo em folha, assim que arruma uma grana? Parou de consumir ou pelo menos consome menos carne em razão dos danos ambientais decorrentes da criação de animais para abate, além da crueldade inerente a esse ato? Recicla o seu lixo doméstico? Você procura andar a pé ou usar o transporte coletivo para ajudar a diminuir a poluição resultante do uso massivo dos meios de transporte particulares movidos a combustível fóssil? Nas eleições, você costuma levar em conta as propostas ecológicas apresentadas por seus(suas) candidatos(as) - e se praticamente nenhuma é apresentada, você se preocupa e toma alguma atitude? Faz parte ou tem interesse em participar de alguma organização voltada para a proteção do meio ambiente e para a promoção do consumo responsável?

Se a sua resposta para a maioria dessas perguntas é não, infelizmente somos parecidos (e, no meu caso, receio que o fato de eu andar a pé e usar o transporte coletivo tem mais a ver com a falta de dinheiro para comprar e manter um automóvel do que qualquer outra coisa ¹).

Ainda assim, mesmo não fazendo porra nenhuma pela saúde da Terra, é preciso muita, muita velhacaria, burrice ou um estado mental de negação patológico para não reconhecer que o planeta está fodido, ambientalmente falando (bem, também acho que está fodido, social e economicamente falando, mas como pretendo focar em determinadas questões hoje, deixarei esse reparo para outra oportunidade).

Há poucos dias, terminei a leitura do (essencial) livro A história das coisas ², elaborado pela norte-americana Annie Leonard (com o auxílio da escritora Ariane Conrad). A publicação faz parte do projeto The Story Of Stuff, que, por sua vez, é um desdobramento do famoso vídeo de mesmo nome (pode ser encontrado no site do projeto, mas há versões legendadas e até dubladas em português disponíveis no Youtube). Apesar de todos os problemas e do cenário alarmante, o livro é esperançoso. Todavia, este blogueiro, pessimista crônico como já deve saber o(a) eventual leitor(a), saiu da leitura ainda mais
convicto da calamidade atual e futura.

A história das coisas, basicamente, descreve os cinco estágios da economia - extração, produção, distribuição, consumo e descarte -, salientando os danos e impactos (na natureza, na sociedade e na saúde pública) decorrentes do processo de obtenção de materiais e fabricação de objetos. Ao seu conhecimento de pesquisadora e cientista ambiental, Annie Leonard adicionou a experiência e os relatos de situações vividas nos muitos anos de ativismo dentro de entidades como o Greenpeace e a Gaia.

Comecei a postagem com perguntas relacionadas a condutas pessoais. Muito embora transformações no comportamento individual sejam bem-vindas, o buraco é muito mais embaixo quando se trata da problemática ecológica planetária. Como escreve a autora no epílogo de seu livro:

"Para viver dentro dos limites do planeta, a mudança precisa ser grande. Ela exige que governo, bancos, sindicatos, mídia, escolas, corporações abracem a causa. Não basta seguir livros com 'dez coisas fáceis que você pode fazer para salvar o planeta'. Michael Maniates, professor de ciência política e ciência ambiental do Allegheny College e especialista em assuntos de consumo, aponta as falhas na abordagem das 'dez coisas fáceis': (1) nossa maior fonte de poder como indivíduos está em nosso papel de consumidores; (2) por natureza, nós, humanos, não estamos dispostos a fazer nada que não seja cômodo; e (3) a mudança só acontecerá se convencermos cada pessoa no planeta a se unir a nós. 
Sejamos realistas. Não é possível chegar a 100% de acordo com quase 7 bilhões de pessoas em nenhum assunto, e nossos sistemas ecológicos estão sofrendo tamanha sobrecarga que simplesmente não dispomos de tempo para tentar. No lugar de uma variedade paralisante de opções de estilo de vida 'verde', precisamos de oportunidades significativas para fazer grandes escolhas, por exemplo, políticas. Num editorial de 2007 no Washington Post, Maniates lamentou: 
A dura verdade é esta: se somarmos as medidas fáceis, econômicas e ecoefientes que todos deveríamos abraçar, conseguiríamos, no máximo, uma redução no crescimento do dano ambiental. Ser obcecado por reciclagem e instalar algumas lâmpadas especiais não basta. Precisamos promover uma virada radical em nossos sistemas energéticos, de transportes e agrícolas, em vez de fazer ajustes tecnológicos marginais, e isso implica mudanças e custos que nossos líderes atuais parecem temerosos em discutir".

Havia escrito que A história das coisas, a despeito do seu pesado tom de alerta, tem um lado esperançoso. O trecho citado acima, porém, denota o contrário. De onde vem então a esperança de Annie Leonard? No mesmo epílogo, a ambientalista cita alguns poucos dados de pesquisas de opinião realizadas entre norte-americanos, favoráveis a certas mudanças ecologicamente desejáveis e alude a certos "sinais" indicativos de novas atitudes entre seus conterrâneos (notoriamente, os consumidores mais perdulários da Terra, cujos hábitos de consumo vêm sendo "exportados" para o restante do mundo nas últimas décadas).

Não sei se isso é suficiente para termos alento.

Não vejo saída para a catástrofe ambiental em que estamos metidos. Por quê?

Pensemos, por exemplo, no uso da água, recurso essencial para aquilo que Leonard chama de "sistema de extrair-produzir-descartar" . Além disso - e peço perdão por dizer tal obviedade -, a água  é substância vital para a sobrevivência dos seres humanos.

Embora mais da metade do planeta seja coberta por água, sabemos que apenas 2,5% desta é potencialmente potável (para falar a verdade, só 1% de toda a água doce é acessível diretamente para nosso uso, pois a outra parte da água potencialmente potável está nas calotas polares ou em aquíferos muito profundos dentro do subsolo). Annie Leonard nos lembra que

"Cerca de um terço da população mundial vive em países que enfrentam crises de água. Uma em cada seis pessoas não tem acesso à água potável. Diariamente, milhares de pessoas - a maioria, crianças - morrem de doenças que poderiam ser evitadas, contraídas em razão da falta de acesso à água limpa. Na Ásia, onde a água sempre foi considerada recurso abundante, a quantidade disponível para cada pessoa diminuiu entre 40% e 60% entre 1955 e 1990. Seu uso excessivo, aliado a secas, contaminação, problemas climáticos, desvio para uso industrial ou agrícola e desigualdade no acesso, contribui para a escassez do líquido. Especialistas preveem que, em 2025, três quartos da população do planeta irão sofrer com a falta de água. E à medida que a água se torna cada vez mais escassa, surgem conflitos em torno do seu uso e da forma que o regulariza. Muitas pessoas - eu, inclusive - temem que o crescente interesse da iniciativa privada que administra sistemas de abastecimento à base de lucro seja incompatível com o direito coletivo à água e com a administração hídrica sustentável".
O controle do abastecimento de água na mão de empresas privadas faz cada vez mais parte da realidade em vários lugares do mundo (no Brasil, inclusive) e o discurso privatista não dá sinais de enfraquecimento. Quando o bicho da escassez pegar, em que essas empresas pensarão primeiro: no ganho dos acionistas ou no interesse público?

Companhias estão secando determinadas regiões (veja o caso da Coca-Cola em Itabirito/MG), isso quando a sua atividade por si só não transforma o precioso recurso em nada mais do que rejeito, como é o caso das mineradoras e suas imensas barragens.

O esgoto residencial e o resíduo da produção industrial vão direto para os rios em trocentos lugares. Gasta-se uma quantidade impressionante de água para produzir papel - desperdiçado em embalagens que, tão logo são rasgadas, vão direto para o lixo. O cultivo do algodão (parte de nossas roupas cada vez mais descartáveis) "requer 970 litros de água" para uma única camiseta. Há, porém, um (ab)uso da água que me tira do sério particularmente:

"Vocês sabiam que nos Estados Unidos gastam-se anualmente mais de 20 bilhões de dólares com gramados?" - pergunta a autora de A história das coisas -. "Em média passamos 25 horas por ano cortando grama, muitas vezes com cortadores poderosos que consomem 3 bilhões de litros de gasolina. Cerca de 750 litros de água por pessoa são utilizados para molhar a grama todos os dias na época de plantio e germinação. Em algumas comunidades, o número corresponde a mais da metade da água usada na residência! Nos Estados Unidos, os gramados representam o maior cultivo irrigado - uma área maior do que a reservada às plantações de milho. Se os americanos substituíssem a grama por plantas nativas que precisam de menos regas e permitem que mais chuva penetre no solo, ao invés de correr para os sistemas de esgoto, reduziriam drasticamente o uso da água em suas casas".
Pensemos agora numa ação vista geralmente como positiva, a reciclagem.

"Grande parte do lixo recolhido para reciclagem nos Estados Unidos é exportada para o exterior, especialmente Ásia, onde as leis trabalhistas e de segurança ambiental são mais frouxas. Rastreei dejetos plásticos, baterias de carros usadas, e-lixo e diversos componentes do lixo municipal americano enviados a Bangladesh, Índia, China, Indonésia e outros lugares do mundo. Eu me infiltrei em instalações (sob vários disfarces!) para dar uma olhada no que acontece com nosso lixo no exterior. As péssimas condições de trabalho que testemunhei não são o que indivíduos conscientes dos Estados Unidos tinham em mente quando, diligentemente, retornaram às fábricas sua baterias de carro usadas"
Por que não vejo saída para a catástrofe ambiental? Porque não acredito que o modo de produção dominante há séculos - o capitalismo - será superado, sequer refreado, mesmo que esteja nos encaminhando para a devastação. A própria Annie Leonard, apesar de viver nos EUA - onde qualquer crítica ao capitalismo é considerada quase um crime de lesa-pátria -, tem clareza de que esse modo de produção é prejudicial à natureza (e, por extensão, prejudicial a nós, que somos dependentes desta):

"Para muitos, o objetivo de nossa economia é aumentar o PIB, ou seja, crescer. Mas, apesar dos avanços científicos e tecnológicos, há mais gente faminta do que nunca: metade da população mundial vive com menos de 2,50 dólares por dia. A fé de nossa sociedade no crescimento econômico repousa na suposição de que sua continuidade é tão possível quanto benéfica. Mas nenhum dos dois pressupostos é verdadeiro. Primeiro porque, devido aos limites do planeta, o crescimento econômico infinito é impossível. Ultrapassado o patamar em que as necessidades humanas básicas são atendidas, ele tampouco se revelou uma estratégia para aumentar o bem-estar. Registramos hoje nas grandes metrópoles um alto nível de estresse, depressão, ansiedade e solidão 
Essa crítica ao crescimento econômico atinge muitos aspectos do capitalismo atual. Eu disse a palavra: 'capitalismo'. É o Sistema-Econômico-Que-Não-Pode-Ser-Mencionado. Quando escrevi o roteiro do vídeo A história das coisas, minha intenção era descrever o que vi em meus anos na trilha do lixo. Certamente não me sentei para ler sobre as falhas desse sistema econômico. Por isso fui pega de surpresa quando alguns comentaristas o consideraram uma 'crítica ecológica ao capitalismo' ou 'anticapitalista'. Isso me inspirou a voltar atrás e tirar a poeira de meus velhos livros de economia. E percebi que os comentários tinham fundamento: uma boa olhada em como fazemos, usamos e descartamos Coisas revela as sérias distorções geradas dentro desse sistema. Não há escapatória: da forma como está sendo conduzido, o capitalismo simplesmente não é sustentável".

Acontece que algumas soluções para ao menos mitigar os problemas - desde as mais simples, como diminuir as jornadas de trabalho e aumentar os dias de descanso dos empregados (sem reduzir salários) ou as mais complexas, como fazer com que as empresas paguem por todos os custos externalizados ³ dos produtos (mesmo que os preços fiquem mais altos para os consumidores finais) e mudar por completo a matriz energética, com o abandono do petróleo e do carvão - nunca serão adotadas, porque o modo de produção capitalista, visto por muitos como uma espécie de religião cujos dogmas não podem ser questionados, está impregnado de um jeito tal em nossas mentes e em nossas relações sociais que buscar suplantá-lo ou ao menos modificá-lo é tarefa fadada ao fracasso.

Em 2016, entre as 100 instituições que mais arrecadaram dinheiro, 69 eram corporações e apenas 31 eram países. Pergunto: dá pra ser otimista sabendo que o poder público é cada dia mais sobrepujado pelo capital privado que, em última instância, só tem compromisso com os dividendos de seus seus detentores?
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¹ Hoje em dia, contudo, isso não é verdade. Sinceramente, acho que os carros representam um dos maiores problemas das cidades, para além da questão ecológica (qualquer dia escrevo sobre isso aqui). Por isso acredito que mesmo se tivesse grana para manter um automóvel não o faria.

² LEONARD, Annie. A história das coisas: da natureza ao lixo, o que acontece com tudo que consumimos. Rio de Janeiro: Zahar, 2011 [Tradução de Heloisa Mourão; revisão técnica de André Piani Besserman Vianna]

³ De acordo com Annie Leonard,

"O preço nas etiquetas tem pouquíssimo a ver com os custos envolvidos na produção das Coisas. Seguramente, alguns dos custos diretos, como os relativos a mão de obra e matéria-prima, estão incluídos no preço, mas esses são inexpressivos se comparados aos custos ocultos externalizados, como a poluição da água potável, o impacto na saúde dos trabalhadores e das comunidades vizinhas às fábricas e as mudanças no clima global. Quem paga por isso? Às vezes são os cidadãos da região, que nesse caso, têm que comprar água engarrafada, uma vez que sua torneira está contaminada. Ou os operários, que pagam do próprio bolso por tratamento de saúde. Ou as futuras gerações, que não contarão com florestas para, por exemplo, regular o ciclo das águas. Já que esses custos são pagos por pessoas e organismos externos às empresas responsáveis por gerá-los, são chamados de custos externalizados".

BG de Hoje

Não vou mentir: acho o TAME IMPALA meio chato. Mas gosto muito dessa faixa, Desire Be Desire Go.