segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Por que assistir Mr. Robot?


Na opinião de muita gente, junto com o novo milênio, inaugurou-se a Era de Ouro das séries de TV. 


Cabe uma digressão.

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No mês passado, disse aqui que as revistas e os jornais impressos foram engolidos pela internet. Pode-se mesmo considerá-los um tipo de mídia ultrapassada, diferentemente, porém, do rádio e dos livros de papel, os quais, se dependesse de alguns apressadinhos (pós)modernosos,  também já estariam condenados à lata de lixo da obsolescência. Mas e quanto à televisão?

Os constantes engarrafamentos do tráfego nas cidades talvez sejam suficientes para demonstrar que o rádio ainda tem seu lugar no mundo da comunicação: grande parte de seus ouvintes está preso no trânsito, indo ou voltando do trabalho. O rádio também é bastante apreciado pelos milhões de indivíduos que moram sozinhos (como este blogueiro); às vezes, sintonizamos em determinada estação apenas para ouvir outra voz humana enquanto preparamos uma refeição, lavamos roupa, etc. Além disso, mesmo nos últimos tempos, quando a programação musical deixou de ser o carro-chefe das emissoras, o rádio sempre funcionou como um repositório de boas dicas e sugestões, um lugar de aprendizado inclusive. As grandes empresas do setor, claro, só reproduzem a hit parade internacional, os artistas jabazeiros e o rebotalho da massificação sonora. Mas persistem redutos interessados na qualidade e, dessa maneira, não estupidificam a audiência (nesses casos, a web é uma benção, pois possibilita iniciativas esplêndidas, como a Rádio Vozes, comandada pela incansável jornalista Patrícia Palumbo).

Os livros de papel, por sua vez, mantêm-se (pelo menos por enquanto) distantes da ameaça de extinção - chegou-se a cogitar que eles seriam rapidamente desbancados por suas versões eletrônicas. Após rápido crescimento, superando inclusive, no valor total das vendas, seus similares tradicionais em 2011, o segmento de e-books, contudo, começou a estagnar a partir de 2015. Livros de papel continuam respondendo pela maior fatia do mercado editorial (por quanto tempo, porém, não se sabe). Isso acontece porque muitos leitores (este blogueiro, inclusive) continuam a preferi-los - por variados motivos, desde o amigável formato e familiar manuseio até um certo apego fetichista e nostálgico. No caso dos livros, entretanto, é forçoso reconhecer que eles não são um produto tão desejado. Mas isso tem muito menos a ver com sua materialidade e mais com o tipo de sociedade imbecilizada na qual vivemos.

A televisão também parecia uma mídia irremediavelmente condenada, uma vez que a web - acessada através de dispositivos móveis, sempre à mão - pode fornecer uma variedade de conteúdos imensamente mais ampla que o cardápio insalubre oferecido em boa parte dos canais (tanto abertos quanto por assinatura) ¹. Talvez como estratégia para responder às baixas audiências, os executivos e produtores deixaram um pouco de lado o investimento no quanto-pior-ou-mais-degradante-melhor - ainda dominante, infelizmente, no modelo broadcast - e procuraram sofisticar os produtos exibidos, seduzindo parcelas de espectadores mais exigentes que evitavam esse veículo. Talvez também seja essa uma das explicações possíveis para o atual boom dos (bons) seriados televisivos. NOTA ²: Embora a Netflix - empresa-chave do entretenimento na atualidade - opere online, por meio de streaming, sem depender de um quadro de horários fixos (como na TV convencional), a indução ao consumo proposta por ela é do tipo televisivo tal como estamos acostumados (até porque muitos de seus clientes assistem os programas de seu catálogo em telas grandes - e não num laptop ou tablet -, pachorrentamente aboletados no sofá, horas e horas a fio, graças aos muitos aparelhos  de TV disponíveis hoje com acesso à internet).

Voltemos agora ao assunto principal da postagem.

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Entre tantas excelentes séries, o(a) eventual leitor(a) provavelmente tem alguma preferida. No caso deste blogueiro, das mais recentes, a minha favorita é, de longe, Mr. Robot.

Exibida nos EUA pela USA Network e no Brasil pelo canal pago Space, Mr. Robot, segundo matéria publicada na revista Rolling Stone em julho deste ano, "came out of nowhere to dazzle the world last summer" ("Mr. Robot apareceu do nada para fascinar o mundo no verão passado")

Sam Esmail, criador da série e diretor de todos os episódios na segunda temporada,  disse, numa entrevista para a mesma publicação, ter tentado vender seu trabalho para as grandes emissoras de TV a cabo, mas ele suspeita que "executives were put off by the show's darkness and interiority (the main character is a mentally unstable, morphine-addicted loner who often cries himself to sleep), along the fact that  - as he heard more than once - 'people on keyboards aren't interesting' " ².

É curioso que os executivos tenham dito que "pessoas num teclado não são interessantes" - afinal, muitos indivíduos nesses tempos digitais não fazem outra coisa a não ser ficar longos períodos teclando e teclando... Mas é realmente surpreendente que alguém tão perturbado como Elliot Alderson, o personagem principal, possa ser tão eletrizante. Falemos sobre isso.

Interpretado brilhantemente pelo ator Rami Malek (que, merecidamente, venceu o Emmy como melhor ator de drama em 2016, além de ser indicado ao Golden Globe de melhor ator em série dramática nos dois últimos anos), Elliot Alderson sofre de depressão, transtorno de ansiedade social (conhecida como fobia social) e transtorno dissociativo de identidade (antigamente chamada de "dupla personalidade"). Na primeira temporada, vemo-lo trabalhando numa empresa de segurança cibernética, mas para nós o que importa é sua extraordinária atuação como hacker. Nos vários episódios de Mr. Robot, sempre ouvimos a voz de Elliot em off, às vezes falando consigo mesmo, noutras com seu alter-ego ou até dirigindo-se diretamente a nós, espectadores. Entre os pontos altos da série estão os monólogos do personagem central. Dois deles já entraram para os melhores momentos da narrativa televisiva em todos os tempos, na minha opinião.

Num destes, logo no primeiro episódio da primeira temporada, Elliot é perguntado (por sua psiquiatra, Krista): "What is it about society that disappoints you so much?" ("O que há com a sociedade que te desaponta tanto?"). A resposta é sublime (embora só os espectadores, e não a terapeuta, ouçam-na):

"Oh I don't know. Is it that we collectively thought Steve Jobs was a great man even when we knew he made billions off the backs of children? Or maybe it's that it feels like all our heroes are counterfeit; the world itself's just one big hoax? Spamming each other with our burning commentary of bullshit masquerading as insight, our social media faking as intimacy. Or is it that we voted for this? Not with our rigged elections, but with our things, our property, our money. I'm not saying anything new. We all know why we do this, not because Hunger Games books make us happy but because we wanna be sedated. Because it's painful not to pretend, because we're cowards. 
Fuck Society." ³
(pode-se encontrar essa cena no Youtube: https://youtu.be/rNfzbPAD8FE)

Noutro, agora no segundo episódio da segunda temporada, Elliot detona com a religião, num desses grupos de ajuda (que não ajudam em nada):

"Is that what God does? He helps? Tell me, why didn’t God help my innocent friend who died for no reason while the guilty ran free? Okay. Fine. Forget the one-offs. How about the countless wars declared in His name? Okay. Fine. Let’s skip the random, meaningless murder for a second, shall we? How about the racist, sexist, phobia soup we’ve all been drowning in because of Him? And I’m not just talking about Jesus. I’m talking about all organized religion. Exclusive groups created to manage control. A dealer getting people hooked on the drug of hope. His followers, nothing but addicts who want their hit of bullshit to keep their dopamine of ignorance. Addicts. Afraid to believe the truth. That there’s no order. There’s no power. That all religions are just metastasizing mind worms, meant to divide us so it’s easier to rule us by the charlatans that wanna run us. All we are to them are paying fanboys of their poorly-written sci-fi franchise. If I don’t listen to my imaginary friend, why the fuck should I listen to yours? People think their worship is some key to happiness. That’s just how He owns you. Even I’m not crazy enough to believe that distortion of reality.


So fuck God. He’s not a good enough scapegoat for me".

(pode-se encontrar também essa cena no Youtube: https://youtu.be/UwDrc2YIRQo)

Há um pouco de inconformismo adolescente na série (meio ingênuo e bobo às vezes, tenho que admitir), mas não é fácil transformar em atração de TV uma história com forte mensagem anarquista e - sob certo ângulo - anticapitalista sem fazer algumas concessões ao público médio. Mr. Robot nos lembra o tempo todo que os grandes inimigos da humanidade não são aliens assustadores, zumbis asquerosos ou supervilões mutantes: neste momento, nosso planeta é ameaçado pelas megacorporações e sua voracidade interminável por lucro e poder. Além disso, a série nos dá uma representação bem realista da ação dos hackers e como somos vulneráveis em nosso uso rotineiro da web. Talvez por isso, o ex-analista da CIA/NSA, Edward Snowden, tenha elogiado a atração.

Todavia, por mais elementos sensacionais contidos na série - da trilha sonora cheia de canções legais aos roteiros inteligentes, dos enquadramentos de câmera incomuns para um programa de televisão às muitas citações cinematográficas empregadas na composição (Clube da Luta, Matrix, V de Vingança, Taxi Driver, entre outros filmes) -, Mr. Robot, mais do que as questões e problemas relacionados com a tecnologia, é brilhante por tematizar um dos grandes males contemporâneos: a solidão. Na matéria da revista Rolling Stone mencionada acima (Mr. Robot: How TV's hit hack drama keeps getting better), o jornalista Rob Sheffield escreve:

"Ultimately, Mr. Robot isn't really a fable about technology — it's about solitude, a drug that can play hideous tricks on the brain. Elliott knows there's a gap between what he thinks and what really exists out there in the world — it is the drama that happens in the no man's land between the two zones. For Elliott, computer code is a language he's mastered to insulate himself from other people, and it served him well up to a point; the question for him is whether he can get beyond that point or whether he's doomed to remain a wounded adolescent, trapped inside his own head forever. All the high-tech splendors of the modern world are just another seductive reason for him to stay home and zone out alone — which is where he gets into trouble. And the reason Mr. Robot hits home is that it's hardly just one guy's problem. There's a little Mr. Robot in everyone".

A misantropia de Elliot Anderson (a ponto de dominar os códigos da linguagem computacional para não ter que interagir com pessoas de carne e osso), sua permanente sensação de não pertencer a lugar nenhum, sua fragilidade emocional, tudo isso faz dele um sujeito facilmente encontrável nos dias atuais. Ele é o (anti) herói que mais combina com nossos tempos.


O blog entra em recesso a partir de hoje e retornará, espero, no dia 02/02/2017. Apesar de não receber retorno algum - neste ano apenas duas pessoas contataram-me por e-mail dispostas a discutir algumas das postagens e nem mesmo meus conhecidos ou familiares acompanham essa joça - o Besta Quadrada é uma das poucas coisas que ainda me dão prazer. Por isso insistirei com ele enquanto for possível. Ao(à) eventual leitor(a), desejo boas festas e um 2017 que seja pelo menos suportável. Ah, antes que me esqueça: FORA TEMER!

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¹ Se as pessoas, em geral, estão fazendo ou não um uso proveitoso do seu acesso à internet já é uma outra discussão...

² [tradução aproximada: "executivos relutaram por causa da escuridão e interioridade do programa (o personagem principal é um solitário viciado em morfina, mentalmente instável, que frequentemente chora até pegar no sono), junto com o fato de que - como ele ouviu mais de uma vez - 'pessoas num teclado não são interessantes' "]

³ [tradução aproximada: "Oh, eu não sei. [Será por que] nós, coletivamente, pensamos que Steve Jobs foi um grande homem quando nós sabemos que ele ganhou bilhões explorando [o trabalho de] crianças? Ou talvez [por que] sente-se como se todos os nossos heróis fossem falsificados; o próprio mundo é apenas uma grande farsa? Entupindo-nos uns aos outros com nossos comentários incendiários de bobagem, mascarando[-os] como introspecção, nossa mídia social passando[-se] por intimidade. Ou [será porque] nós votamos nisso? Não com nossas eleições arranjadas, mas com nossas coisas, nossa propriedade, nosso dinheiro. Não estou dizendo nada novo. Nós todos sabemos porque fazemos isso. Não porque livros como Jogos Vorazes nos fazem felizes, mas porque queremos estar sedados, porque é doloroso não fingir, porque nós somos covardes. Foda-se a sociedade".]

[tradução aproximada: "É isso que Deus faz? Ele ajuda? Diga-me, por que Deus não ajudou meu amigo inocente que morreu sem motivo enquanto o culpado escapou livre? OK. Tudo bem. Esqueça os casos isolados. E quanto as inúmeras guerras declaradas em nome Dele? OK. Tudo bem. Vamos pular o assassinato sem sentido e aleatório por um instante, podemos? Que tal toda a sopa de fobia, racismo e machismo na qual estamos nos afogando por causa Dele? E não estou falando apenas de Jesus. Estou falando sobre toda a religião organizada. Grupos exclusivos criados para manter o controle. Um traficante mantendo as pessoas fisgadas numa droga de esperança. Seus seguidores, nada mais do que viciados que querem sua dose de dopamina da ignorância. Viciados. Com medo de acreditar na verdade. Que não há ordem. Não há poder. Que todas as religiões são apenas vermes espalhando um câncer na mente, destinadas a nos dividir, pois é mais fácil para nos controlar através de charlatães que querem mandar em nós. Tudo o que somos para eles é apenas tietes pagantes da sua franquia de ficção científica mal escrita. Se eu não escuto o meu amigo imaginário, por que deveria escutar a porra do seu? As pessoas pensam que a adoração é alguma chave para a felicidade. Isso é apenas o modo como Ele torna-se seu dono. Mesmo eu não estou tão louco assim para acreditar nessa distorção da realidade. Então, Deus que se foda. Ele não é um bode expiatório bom o suficiente pra mim"]

[tradução aproximada: "Por fim, Mr. Robot não é realmente uma fábula sobre tecnologia - é sobre solidão, uma droga que pode fazer horríveis truques no cérebro. Elliot sabe que há uma distância entre o que ele pensa e o que existe lá fora no mundo - é o drama que acontece na terra de ninguém entre duas zonas. Para Elliot, o código de computador é uma linguagem que ele dominou para isolar-se das outras pessoas, e ela serviu bem a ele até certo ponto: a questão é se ele consegue ir além desse ponto ou se ele está condenado a ser um adolescente ferido, preso dentro da sua própria cabeça para sempre. Todo o esplendor high-tech do mundo moderno é apenas outro motivo para ele ficar em casa, esquecido e só - que é onde ele se encrenca. E o motivo de Mr. Robot causar tanto efeito é que isso dificilmente é problema de apenas um cara. Há um pequeno Mr. Robot em cada um".]

BG de Hoje

Aqui no blog não costumo seguir critérios para escolher os BGs. Boa parte das vezes a canção incluída não tem nada a ver com o que foi escrito na postagem: é só uma música de que gosto muito ou, por acaso, ouvi pela manhã antes de sair pro trabalho, lembrei dela por um motivo qualquer, etc. No caso de hoje, porém, Are you lost in the world like me?, do MOBY, acompanhada dessa animação sensacional do STEVE CUTTS (o blog do desenhista e artista gráfico está entre os recomendados aqui da casa) é perfeita para estar junto a um texto sobre Mr. Robot.