sexta-feira, 4 de novembro de 2016

"Quem tá na merda não filosofa"



O aforismo usado no título desta postagem é a "moral" que encerra Os perigos da filosofia, o último texto do impagável volume Fábulas fabulosas*, de Millôr Fernandes, publicado em 1973, se não me engano.

A primeira vez que li esse livro, lembro bem, foi aos 14 anos. Havia sido aluno de uma ótima professora de Língua Portuguesa na sétima série (chamava-se Cleone). Durante uma de suas aulas, ela fez uma leitura comentada tão vibrante e divertida de A morte da tartaruga - outro dos textos de Fábulas fabulosas - que fiquei tremendamente desejoso de conhecer todo o conjunto. Uma de minhas irmãs mais velhas tinha um exemplar em casa. Já estava familiarizado como os desenhos e charges de Millôr Fernandes através de seus trabalhos para a imprensa, mas não muito em relação à sua escrita. Confesso não ter compreendido integralmente várias daquelas fábulas irreverentes e insólitas, dadas minha juventude abobada e a reduzida bagagem pessoal de leituras naquela época. Gostei, contudo. Anos mais tarde comprei um exemplar próprio (já tive uns três até hoje), tornando-se um dos itens mais estimados em minha pequena biblioteca doméstica.

Pois bem. Em Os perigos da filosofia, uma narrativa de apenas duas páginas, quatro rapazes e um professor estão agrupados em um local sobre o qual nada sabemos no início da história. O professor propõe um joguete de raciocínio como passatempo. Soluções insatisfatórias são apresentadas pelos rapazes até que o último jovem dá uma resposta excelente. O desfecho, entretanto, coloca-os numa tremenda enrascada (para saber mais, leia o texto do Millôr, ora essa!).

A chave para alcançar o humor da fábula e entender seu final está na palavra aparelho, usada no texto. Num país como o nosso, em que o estudo de História (como, de resto, o estudo de todas as outras matérias do currículo escolar) é negligenciado, muitos talvez não saibam que aparelho, ainda mais em 1973, na Ditadura (e quando Fábulas fabulosas foi publicado, até onde sei), designava algo um pouco diferente de seu sentido comum. Uma ajudinha do Houaiss: "local (apartamento, casa, etc.) usado por grupo político clandestino para suas reuniões nos anos de regime ditatorial".

Estudantes e professores de Filosofia (como supomos ser o caso daqueles personagens) costumavam, no imaginário de certas pessoas, assumir a feição de indivíduos contestadores, propensos a se envolver em protestos e revoltas políticas; daí seria um pulo para a participação deles em organizações clandestinas (e, de fato, confirmando esse imaginário, isso ocorreu no Brasil com muitos indivíduos durante a resistência ao regime militar). Além disso, até hoje, os interessados em Filosofia (assim como os interessados nas ditas ciências humanas) costumam ser rotulados** como sendo de esquerda - o que, para uma galera mal-informada, assustadiça e reacionária, significa vagabundos-perigosos-querendo-implantar-a-ditadura-do-proletariado-a-todo-custo e blá, blá, blá... Estar o tempo todo sob a investigação e ameaça da polícia no passado (e mesmo no presente, quando muitos movimentos sociais e manifestações correm o risco de ser tratados como terrorismo!) - o que os obrigava a se esconderem nos aparelhos - ajuda a entender o estar na merda da "moral" da fábula.

Mas a frase "quem tá na merda não filosofa" - e que frase legal! - pode ser interpretada de outra forma, pensando agora noutras situações.

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Desde a Antiguidade, na Grécia - ou seja, desde o nascimento da Filosofia, tal como tradicionalmente a entendemos*** -, o ato de filosofar e o ato de contemplar sempre estiveram associados quando se pensa na figura do filósofo. E a palavra contemplação, com frequência, opõe-se à ação. Um dos estereótipos do filósofo -  bem diferente daquele que esboçamos acima -  é o de alguém isolado do mundo, cercado apenas por livros ou outros "estimulantes" do pensamento, murmurando de si para si ou contemplando (no sentido de refletir detidamente acerca de um tema) algo que não nos é dado perceber de imediato; as únicas vezes em que esse sujeito age é quando passa para o papel o resultado de suas lucubrações. Essa imagem um tanto caricatural - mas partilhada por algumas pessoas - reforça a oposição entre a ação e a contemplação que, supostamente, existiria dentro do filósofo. Não percamos o fio da meada.

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Tenho vontade de rir - para não gritar de raiva - todas as vezes em que ouço/leio alguém afirmando: "é preciso trabalhar naquilo de que se gosta". Como se a massa de indivíduos que vende sua força de trabalho no mercado tivesse várias opções para escolha! A imensa maioria dos(as) trabalhadores(as) do mundo é compelida a deslocar-se em meio a um trânsito opressivo, a suportar durante horas e horas rotinas de trabalho sem nenhuma circunstância prazerosa (não raro, sem sentido e, nalguns casos, degradantes), a lidar com outros seres humanos rudes, hostis ou, na melhor das hipóteses, simplesmente burros, tudo isso não porque gostam, é óbvio: esses(as) trabalhadores(as) fazem-no unicamente porque precisam sobreviver. Não é necessário dizer o quanto essa condição exaure - mental e fisicamente - os que dela não podem escapar (como este blogueiro e penso também ser o caso do(a) eventual leitor(a)). Tantas vezes engolidos pelo monstro voraz do trabalho e com o espírito avizinhando-se do esgotamento com o passar do tempo, como seria possível  a eles e elas a contemplação (no sentido de refletir detidamente acerca de um tema, por exemplo, a sua própria condição de sujeito explorado e alienado)?

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A crença na superfluidade da reflexão filosófica é tão antiga quanto a existência da Filosofia. E persiste ao longo das eras: uma mostra disso é a famigerada proposta de reforma do ensino médio apresentada recentemente pelo governo golpista de Michel Temer retirando essa e outras disciplinas - essenciais ao meu ver - da grade curricular. Proclamar que a Filosofia é inútil - assim como a Arte, incluída aí a Literatura - não se restringe apenas aos indivíduos com baixa escolaridade e aos políticos a serviço do embrutecimento: é fácil encontrar dentro do ambiente universitário quem execre todas essas outras dimensões do saber humano. Se tal desapreço pode ser verificado entre aqueles que dispõem de um certo capital cultural, o que dizer do enorme contingente de pessoas cercadas exclusivamente pela indústria do entretenimento? O pensamento de natureza filosófica, nesse caso, nem sequer é cogitado dentro do horizonte de suas preocupações - sempre prementes - com a sobrevivência.

Imbecilizadas pela massificação e sugadas pelo universo do trabalho alienante - em boa parte dos casos, não por sua vontade - essas pessoas, para piorar, desconhecem o que seja o ócio.

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Quando foi a última vez que o(a) eventual leitor(a) parou para pensar? A quem é dado - num mundo erigido sobre a desigualdade social - o direito de subtrair-se às exigências do trabalho para poder contemplar (no sentido de refletir detidamente acerca de um tema, por exemplo, que raio de vidinha miserável é essa na qual estamos encalacrados)? Por que o ócio - vital, penso eu, para uma vida verdadeiramente humana - é privilégio de poucos?

Nós, trabalhadores, estamos na merda. Como filosofar em tal estado?

Entretanto, ainda que nossa margem de escolha seja reduzidíssima, pode-se ao menos insistir. O otimismo não faz parte do universo deste blogueiro; ainda assim, digo que entre as poucas chances de sairmos da latrina, a despeito do mundo do trabalho que nos rouba a possibilidade de contemplação (no sentido de refletir detidamente acerca de um tema, por exemplo, como conferir dignidade à nossa existência), é tentar parar para pensar.  

Quem tá na merda não filosofa, mas não teria nada a perder se escolhesse fazê-lo, uma vez que já perdeu quase tudo.
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* FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. 12 ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1991

** Esclareço mais uma vez que me considero um sujeito de esquerda. Mas é um grande erro pressupor que os interessados em Filosofia e nas chamadas Humanidades tenham uma "inclinação natural" para se posicionar contra o conservadorismo e o pensamento reacionário. 

*** Há quem defenda, com bons argumentos, que a reflexão filosófica não foi uma exclusividade da Hélade, como se tivesse ocorrido uma espécie de "milagre grego". Como não é objetivo deste texto discutir essa questão, deixo-a para outra oportunidade.

BG de Hoje

Quem tá na merda não filosofa... Mas preciso tentar, pra não sucumbir de vez ao desespero. Pensei, para o BG de hoje, algo que misturasse pessimismo e positividade. Fico com a parte pessimista, como não seria diferente. Canta a banda NOCAUTE (que tem uma pegada meio Planet Hemp e BNegão) na vigorosa faixa Men's, que eu gosto pra caralho: "Ultimamente eu tenho andado preocupado/É que o bicho tá pegando pro meu lado".