sexta-feira, 29 de julho de 2016

Língua, comunicação, identidade


Antes de começar a tratar propriamente do assunto da postagem de hoje, peço a atenção do(a) eventual leitor(a) para o trecho abaixo, que inicia o capítulo 17 do ótimo romance Americanah*, de Chimamanda Ngozi Adichie, relido nos meus últimos dias de recesso do trabalho durante este mês de julho:

"Ifemelu decidiu parar de fingir que tinha sotaque americano num dia ensolarado de julho, no mesmo dia em que conheceu Blaine. Era um sotaque convincente. Ela o aperfeiçoara, ouvindo com cuidado amigos e apresentadores de noticiário, a contração do tê, o enrolado profundo do erre, as frases começando com 'então' [deduzo que a tradutora esteja se referindo a palavra 'so'] e a resposta fácil, 'é mesmo?' ['really?'], mas o sotaque tinha rachaduras, era consciente, precisava ser lembrado. Exigia um esforço, o lábio retorcido, os volteios da língua. Se Ifemelu estivesse em pânico, apavorada, ou se fosse acordada de supetão no meio de um incêndio, não ia lembrar como produzir aqueles sons americanos. Por isso, resolveu parar naquele dia de verão, no fim de semana do aniversário de Dike. Sua decisão foi tomada devido a uma ligação de telemarketing".

Caso você não tenha lido o livro convém informar que Ifemelu, jovem nigeriana, estudante (nesse momento da narrativa), é a protagonista; Blaine é um professor universitário norte-americano (mais adiante, será namorado de Ifemelu); e Dike é o primo da personagem central, que a trata quase como tia ou irmã mais velha.

Um dos vários temas de Americanah é a situação do imigrante e suas estratégias de adaptação a um país que não é o seu. No capítulo 14, já havíamos conhecido uma personagem secundária bastante antipática, Cristina Tomas. Funcionária da universidade Wellson (pseudônimo para a Drexel University, como vim a saber depois), instituição de ensino para onde Ifemelu se encaminhou ao sair da Nigéria, Cristina Tomas trata a jovem estudante africana com condescendência e um certo desprezo por presumir que ela não falasse inglês (não custa lembrar que o inglês é a língua oficial da Nigéria, ensinada nas escolas, embora o igbo, o iourubá, o hausá e outros idiomas nativos continuem sendo usados naturalmente pela população). Ifemelu fica desconcertada:

"[...] antes de pegar os formulários, ela se encolheu. Como uma folha seca. Falava inglês desde pequena, fora a capitã da equipe de debate no ensino médio e sempre achara a pronúncia anasalada dos americanos um pouco rudimentar; não devia ter se acovardado e encolhido, mas o fez. E, nas semanas seguintes, conforme o frio do outono ia surgindo, começou a treinar um sotaque americano"

Posteriormente, entretanto, como vimos, ela acaba decidindo "parar de fingir". Recebe uma banal ligação de telemarketing. Não encerra logo a chamada, como habitualmente faria, pois algo na voz do rapaz do outro lado manteve-a na conversa. Sentiu "uma estranha pena dele" - quem sabe por ser o telemarketing uma das piores ocupações no atual estágio da economia capitalista... "Talvez fosse seu primeiro dia no emprego e ele estivesse com o fone machucando-lhe o ouvido enquanto trabalhava, sentindo a vaga esperança de que as pessoas pra quem ligava não estivessem em casa". A conversa prossegue, negociam tarifas de ligações internacionais. Ao saber que Ifemelu estava há apenas três anos nos Estados Unidos, o rapaz diz, em tom de elogio: "Uau. Legal. Você parece uma americana falando". É quando a personagem percebe o que se passa:

"Só depois de desligar Ifemelu começou a sentir a mácula de uma vergonha crescente se espalhando sobre ela, por ter agradecido ao rapaz, por ter transformado as palavras dele, 'Você parece uma americana falando', numa guirlanda que pôs em volta do próprio pescoço. Por que era um elogio, uma realização, soar como um americano? Ifemelu tinha ganhado; Cristina Tomas, a branca Cristina Tomas sob cujo olhar se encolhera como um pequeno animal derrotado, falaria normalmente com ela agora. Tinha ganhado de fato, mas seu triunfo era vazio. Sua vitória efêmera havia criado um enorme espaço oco, porque ela assumira, por tempo demais, um tom de voz e uma maneira de agir que não eram seus. Assim, ela acabou de comer os ovos e decidiu parar de fingir que tinha sotaque americano".


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É difícil não admitir o poderio econômico e militar dos Estados Unidos (ainda que em declínio nas últimas décadas), como também é tarefa árdua negar a imensa influência cultural - sobretudo por meio do entretenimento, do cinema e da música - exercida pelos norte-americanos. Que fique claro: não estou enaltecendo tal estado de coisas, muito menos exaltando-o; trata-se apenas de reconhecê-lo. Assim sendo, é bastante compreensível que a língua inglesa, na atualidade, possa ser considerada, inequivocamente, lingua franca (como foram o grego e, principalmente, o latim, durante séculos, e ainda é o caso do suaíli e do árabe, hoje, em certas partes do mundo). O estabelecimento de uma lingua franca está, como se pode intuir facilmente, ligado a razões comerciais e diplomáticas, mas, infelizmente, o idioma a ser usado não passa pela escolha dos povos em contato (basta ver o fracasso de uma língua internacional de contato planejada, como é o caso do esperanto). Um certo idioma impõe-se em determinada época - muito em função do poder ou do prestígio do país/nação que o utiliza - e os indivíduos e instituições passam a adotá-lo como instrumento de comunicação possível entre falantes de línguas diversas. Como já disse, o inglês exerce tal papel na atualidade, especialmente no mundo ocidental, goste-se ou não.

No entanto, a situação torna-se angustiante e desconfortável, muitas vezes, porque o uso de um idioma que julgamos não nos pertencer (ou, no caso de Ifemelu, que nos soa ensaiado, pouco natural) mexe com nossa identidade. As pessoas desejam reconhecer-se nas línguas que falam. Por isso é tão dramática a situação de milhares de comunidades mundo afora que veem o número de falantes de suas respectivas línguas morrerem sem que seu patrimônio linguístico seja repassado ou preservado (o Brasil é um dos locais em que isso acontece). Por outro lado, poucas coisas são tão prazerosas quanto transitar - seja como simples usuário ou como estudioso - pelos diversos registros de um idioma: culto ou popular, escrito ou falado, notando as diferenças regionais e as variações dialetais.

O problema é que, num mundo intensamente globalizado, somos cada vez mais tangidos para um certo tipo de "nova ordem mundial comunicacional" (na esteira da web e das tics) na qual o inglês americano (não o britânico, australiano ou aquele falado na Índia ou em países africanos) coloca-se como a força dominante, pouco disposta a abrir brecha para outro idioma (embora, no futuro, o árabe e, principalmente, o mandariam possam estar nessa posição). Tudo isso nos leva a pensar em como agir, linguisticamente falando, no atual cenário. Este blogueiro já definiu sua tática - pelo menos com relação ao uso do inglês americano. Mas isso é assunto para outra postagem (a ser publicada em breve, espero).

* ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Americanah. São Paulo: Companhia das Letras, 2014 [Tradução de Julia Romeu]

BG de Hoje

Voltar ao trabalho é sempre uma grandessíssima m...! Por isso preciso reunir forças (não sei de onde). Ajuda ouvir músicas que nos fazem sentir bem. Embora meus "dias de cão" estejam longe de acabar (se é que acabarão um dia), esta canção de FLORENCE + THE MACHINE sempre me anima: Dog Days Are Over.