sexta-feira, 1 de abril de 2016

Aquele espectro no caminho


Há um célebre poema de Augusto dos Anjos chamado O Morcego*.

À meia-noite, o asqueroso quiróptero invade um aposento, importunando o sono do eu lírico, que se pergunta: "Que ventre produziu tão feio parto?". O soneto termina assim:

"A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra

Imperceptivelmente em nosso quarto!"

O sono perturbado por uma consciência culpada é imagem bastante familiar a todos nós, suponho. Afinal, só os justos dormem em paz. E quem consegue ser justo o tempo todo?

A consciência - para muitos, aquilo que nos torna humanos e nos distingue especialmente dos outros seres vivos - orienta uma parte das condutas individuais. Não obstante, responde ela por muitas das aflições, angústias e desprazeres experimentados. Eis, então, que não se suporta mais sua vigilância, seu controle: insurge-se contra a consciência, contra aquilo que se imagina (ou melhor dizendo, aquilo que se deseja) ser aos olhos dos outros.

É o embate com a consciência (denotando, nesse caso, um conjunto de valores e juízos morais) o sustentáculo do conto William Wilson**, meu preferido dentro da obra de Edgar Allan Poe.

Se, no poema de Augusto dos Anjos, a consciência é uma criatura de voo medonho, na narrativa de Poe, a metáfora se dá de outro modo, mais penetrante e maligno, através da figura do duplo ou alter-ego.

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O estranho caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde, de Robert Louis Stevenson é, certamente, uma das mais conhecidas obras literárias a valer-se dessa alegoria, narrando a convivência mórbida das duas personalidades conflitantes de que todos nós, supostamente, somos feitos. Contudo, seu surgimento - vale destacar - é bem posterior a William Wilson, publicado pela primeira vez em 1839 numa revista da Filadélfia. Terá sido fonte de inspiração para o autor escocês? Tão conhecido quanto a história do "médico e o monstro" é O retrato de Dorian Gray, lançado seis anos após Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Embora naquele romance de Oscar Wilde o alter-ego seja representado de maneira bem peculiar, seu personagem central evidencia desconforto similar em relação aos ditames de sua consciência, tal como no conto de Poe e na novela de Stevenson.

Pensando em escritores brasileiros, lembro da discussão de ordem metafísica enfeixada no conto O espelho, de João Guimarães Rosa, no qual se encontra o famoso trecho: "Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo". Pairante no texto de Rosa está a pergunta: Quando olhamos no espelho é o nosso eu verdadeiro a se refletir? (talvez, em algum momento, surja na imagem especular um outro que não é propriamente o nosso reflexo). Rubem Fonseca, por sua vez, sem falar de espelhos, lança a metáfora do duplo no cenário urbano de uma metrópole clivada pela desigualdade econômica em O outro, publicado na metade dos anos 1970. O término desse excepcional conto é funesto, como é de se esperar em histórias do tipo.

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"Tornam-se os homens usualmente vis, pouco a pouco" - tasca na nossa testa, sem lançar mão de atenuantes, o narrador-personagem de William Wilson -. "Mas de mim, num só instante, a virtude se desprendeu, realmente, como uma capa. Duma perversidade relativamente trivial, passei, a passadas de gigante, para enormidades maiores que as de Heliogábalo".

Rico, imperioso e mimado, o narrador-personagem, em flash-back, nos põe a par de sua historinha sórdida, adotando um tom confessional. O leitor, progressivamente, percebe-se diante de um esquizofrênico perverso (embora, deva-se notar que muitas das perversidades sejam apenas insinuadas no texto ou, pelo menos não descritas diretamente). A epígrafe do conto - versos de um obscuro poeta do século XVII, William Chamberlayne (ou Chamberlain) - nos dá a principal via de acesso à significação da narrativa: "Que dirá ela? Que dirá a horrenda Consciência, aquele espectro no meu caminho?"

Tal como um fantasma, um espectro, o alter-ego estará sempre no encalço do narrador-personagem, sussurrando-lhe censuras e reprimendas. Sobre a dificuldade de definir o que sentia pelo outro, encontramos no texto:


"[Os sentimentos] Formavam uma mistura complexa e heterogênea; certa animosidade petulante que não era ainda ódio, alguma estima, ainda mais respeito, muito temor e um mundo de incômoda curiosidade. Para o moralista, será necessário dizer em acréscimo, que Wilson e eu éramos os mais inseparáveis companheiros".


Por que gosto tanto desse conto? É uma história que recupera o poder concentrado das parábolas e narrativas fabulares de transmitir algo valioso, sábio, sem reduzir-se, todavia, às liçõezinhas de moral baratas. Um risco, a meu ver, bem calculado pelo autor, inclusive nos quatro parágrafos finais.
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* ANJOS, Augusto dos. O morcego. In: _________. Eu e outras poesias. 47 ed. rev. amp. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 97

** POE. Edgar Allan. William Wilson. In: ________. Contos de terror, de mistério e de morte. 7 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 99-119. [Tradução de Oscar Mendes]

BG de Hoje

FEAR FACTORY é uma banda de altos e baixos. Ouvia direto em determinado período da minha vida; depois dei um tempo e, mais recentemente voltei a escutar, sobretudo faixas dos primeiros discos (que são interligados e meio conceituais), como essa Ressurection.