sexta-feira, 24 de abril de 2015

Amor: um trunfo da ficção


Dias atrás, eu disse não gostar de histórias de amor. Lembrei-me já ter escrito aqui, numa postagem relativa ao filme A primeira noite de um homem, que o amor é uma palavra (e também um conceito) que se desgastou bastante mas, mesmo assim, adquiriu importância cultural e simbólica gigantesca graças a obras ficcionais, principalmente literárias. Ou seja, aquilo que chamamos amor é, em grande parte, derivado de um artifício, de uma invenção. No caso da Literatura, o conceito foi sendo construído unicamente através de recursos de linguagem e, não obstante, influenciou as representações sociais. Com a disseminação do Cinema no século XX, entretanto, a circulação de narrativas amorosas se ampliou, alcançando o público não-leitor. E hoje em dia, junto com as canções populares, temos os filmes - e não mais os livros - como grandes veiculadores de um certo discurso do amor.

Pelo que me dizem, o amor manifesta-se sem necessidade da mediação ficcional ou do apelo à imaginação, embora deva ser um fenômeno raríssimo, penso eu. Não estou querendo alegar que só faz sentido falar do amor por meio do artifício da ficção. Apenas considero que esse tópico foi (e continua sendo) um dos maiores trunfos das narrativas ficcionais, explorado recorrentemente pelos artistas desde que o mundo é mundo. Esse trunfo está o tempo todo diante de nós, quando se lê, por exemplo, Romeu e Julieta ou quando se assiste a Titanic. Somos muito suscetíveis às sugestões provenientes do mundo da ficção e acabamos conferindo às sensações e sentimentos experimentados um grau de elevação e intensidade pouco (ou nada) verificável no plano factual.

Isso, porém, é só a opinião deste mísero blogueiro.

. . . . . . .

Falemos agora de um livro feito sob medida para essa conversa. Refiro-me a O amor nos tempos do cólera*.

Antes de prosseguir, contudo, devo prevenir o(a) eventual leitor(a): não gosto desse romance e García Márquez não figura entre meus escritores prediletos. Cá estão, obra e autor, apenas pela conveniência do tema.

Atentemos para uma passagem do livro em que o narrador nos fala de uma crise surgida porque Juvenal Urbino fez, como era usual para ele, pequenos barulhos que exasperavam a esposa, Fermina Daza, com quem era casado há décadas, durante o meio-sono dela. A mulher

"Então rolava na cama, acendia a luz sem a menor clemência para consigo mesma, feliz com sua primeira vitória do dia. No fundo era um jogo de ambos, mítico e perverso, mas por isso mesmo reconfortante: um dos muitos prazeres perigosos do amor doméstico. Mas foi por causa de um desses brinquedos triviais que os primeiros trinta anos de vida em comum estiveram a ponto de se acabar porque um certo dia faltou sabonete no banheiro".

Como a narrativa abarca mais de meio século da vida de seus personagens centrais (além dos citados, o obcecado Florentino Ariza completa o triângulo), O amor nos tempos do cólera vai conseguindo corroer aos poucos a noção um tanto tola de amor romântico, ainda persistente na cabeça de boa parte das pessoas. O trecho acima parece nos dizer: não há amor puro e verdadeiro (assim é idealizado o amor romântico) que resista à rotina de quase 60 anos de casamento! Como escrevi, o excerto parece dizer isso; o leitor, entretanto, deve ficar atento pois o narrador se vale o tempo todo da amplitude de sentido da palavra amor (exceto nas muitas vezes em que amor é, de forma inequívoca, sinônimo de sexo).

Logo mais à frente, em decorrência da "crise do sabonete", ficamos sabendo

"[...] que o incidente lhes deu a oportunidade de evocar outros arrufos minúsculos de outras tantas manhãs perturbadas. Uns ressentimentos mexeram em outros, reabriram cicatrizes antigas, transformaram-se em feridas novas, e ambos se assustaram com a comprovação desoladora de que em tantos anos de luta conjugal não tinham feito mais do que pastorear rancores"

É de se notar que, apesar de "pastorearem rancores", o narrador busca convencer o leitor de que ali há amor e dos mais poderosos; noutro capítulo, mais adiante, lê-se:

"Tinham contornado juntos as incompreensões cotidianas, os ódios instantâneos, as grosserias recíprocas e os fabulosos relâmpagos de glória da cumplicidade conjugal. Foi a época em que se amaram melhor, sem pressa e sem excessos, e ambos foram mais conscientes e gratos pelas vitórias inverossímeis contra a adversidade".

É provável que minha insatisfação com esse livro em particular decorra da antipatia que sinto por seus personagens-chave (sou o tipo de leitor que, entre os elementos estruturantes de um texto literário, concede sempre um peso maior aos personagens). De todo modo, O amor nos tempos do cólera, apesar de ser mais uma obra a lançar mão do trunfo mais manjado entre os tópicos recorrentes da Literatura, tem como maior mérito - repito - a corrosão (ainda que parcial, para meu desapontamento) da representação romântica do amor. NOTA: Vale acrescentar (aqui dou o braço a torcer) que o último capítulo de O amor nos tempos do cólera deve ser incluído entre as páginas mais bem escritas da Literatura latino-americana em todos os tempos.

Há outro grande tema nesse livro: a velhice, ou melhor dizendo, o envelhecimento. É justamente o que mais me interessa nessa narrativa, mas como a postagem já está muito extensa, deixo para outra oportunidade.

Na próxima semana, continuo falando do assunto amor. Dessa vez, porém, a conversa será sobre dois filmes.

* MÁRQUEZ, Gabriel García. O amor nos tempos do cólera. 39 ed. Rio de Janeiro: Record, 2012 [Tradução de Antonio Callado]

BG de Hoje

A canção do BG não é das melhores entre aquelas gravadas por ERIC CLAPTON. Não tem a pujança de sua época áurea, nos grupos Cream e Derek and The Dominos, nem a elegância de sua atual fase, mais acústica e bluseira. Ainda assim, qualquer coisinha do Eric Clapton, como esta Bad love, é melhor do que as porcarias que estão sendo lançadas por aí. OBS: Na gravação do disco e no clipe abaixo, participação especial de Phil Collins, na bateria e nos vocais.