segunda-feira, 23 de março de 2015

Apontamentos sobre a difícil arte da leitura e outras divagações (II)


Terminei a postagem anterior perguntando se os leitores, hoje tão ansiosos pela facilitação das coisas e dos processos (inclusive em relação aos atos de leitura) poderiam, de alguma forma, ser afetados por uma literatura que vá além do puro entretenimento (e quem sabe, por isso, uma literatura mais "difícil"). NOTA: O verbo afetar vem sendo utilizado aqui num sentido muito específico, entre suas várias acepções. Afetar, nesse contexto, significa "impressionar afetivamente; comover; sensibilizar"*.

Antes de prosseguir, gostaria de fazer algumas observações sobre o livro A mocinha do Mercado Central**, de Stella Maris Rezende. Anteriormente, eu havia mencionado essa autora por conta de uma entrevista na qual ela defendia uma arte literária que buscasse ser mais parecida com a "condição humana: contraditória, angustiante, ambígua, inexplicável, complexa e difícil". Por falar em "difícil", é esse o adjetivo ocasionalmente empregado para se referir aos textos da escritora mineira. No caso de A mocinha do Mercado Central, há ainda a abordagem de temas pouco usuais (estupro, suicídio, solidão), sem, contudo, abrir mão de sua capacidade encantatória, fugindo de armadilhas comuns aos estereótipos presentes na literatura para jovens.

A narração frequentemente se desloca entre os sonhos, lembranças e a imaginação solta da protagonista Selma Gilda Nídia Míriam Simone Teresa Zoraida ou, simplesmente, Maria Campos. Desprevenido, se apenas adestrado por histórias em formato linear e convencional, um possível jovem leitor (estou somente conjecturando) talvez se queixe: "Que livro difícil!". É possível também que a suposta dificuldade não seja causada pelas escolhas lexicais da autora, nem pela sua sintaxe (nesses quesitos, o texto de Stella Maris é saudavelmente simples). Suponho que a pecha de "difícil" tenha mais a ver com as experiências, exigências e expectativas - menos arrojadas e sofisticadas atualmente - do público leitor em geral.

Há um curioso trecho em A mocinha do Mercado Central no qual a protagonista vai a uma feira de livros. Na sua cabeça, escuta a voz da tia, leitora inveterada, sugerindo-lhe que ao menos dê uma folheada num dos exemplares expostos. Em pensamento a jovenzinha responde:

"Ô tia, não adianta, eu não nasci pra gostar de livros. Gosto de cinema e de viajar, gosto de imaginar, dessas coisas eu gosto, mas não tenho paciência pra pegar um livro e ficar ali quieta, lendo, feito pamonha". A voz narrativa acrescenta em seguida: "Andou mais um pouco. Viu rapazes e moças da idade dela com os olhos grudados nos livros sentados em bancos aqui e ali. Não sentiu inveja. Ela possuía suas viagens, suas ' imaginagens ', seus filmes".

Vale dizer que a personagem desenvolverá perspectiva diferente com relação à leitura noutro momento da história, ao se maravilhar com a obra de Fernando Pessoa. Mas, na passagem acima citada, Stella Maris Rezende parece nos lembrar que, embora o ato de ler (sobretudo ficção e poesia) seja do maior interesse para alguns indivíduos, muitos outros mais vão se inclinar para atividades diversas, sem que se tornem com isso sujeitos menos capazes de elaborar suas "imaginagens". Os militantes da leitura (este blogueiro inclusive) precisam aceitar que c'est la vie.

Voltando, entretanto, à questão inicial dessa postagem - leitores ansiosos pela facilitação poderiam ser afetados por uma literatura mais difícil, além do mero entretenimento? - diria que tal possibilidade depende de um outro tipo de disposição intelectual e de uma nova abertura estética por parte desses leitores. Algo que considero bastante improvável, porém.

Termino essa série de postagens nas próxima semana.

* Tal como se pode encontrar na acepção n. 5 do verbete AFETAR no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, ed. 2004. p. 101.

** REZENDE, Stella Maris. A mocinha do Mercado Central. São Paulo: Globo, 2011 [Ilustrações de Laurent Cardon]

BG de Hoje

Dia desses estava num dos meus antros preferidos - o Bar do Dinei - quando, do toca-discos (sim, lá tem um toca-discos) salta RAUL SEIXAS. Zeca Baleiro, numa canção bem humorada, notou que certos fâs do artista baiano manifestam-se e comportam-se de um modo tal que "parece uma seita". E, infelizmente, por causa desses fanáticos (conheço alguns bem chatos), fiquei um certo tempo sem ouvir o bom Raulzito. E nesse dia, lá no Boteco do Dinei, enchendo a cara, foi prazeroso ouvir o Há 10 mil anos atrás, disco em que eu destacaria Meu amigo Pedro, sensacional letra de Paulo Coelho, sobre a "eterna batalha" entre a caretice e a porra-loucura.