sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O que poderia explicar a estranha satisfação dos homens-massa? (III)


"Toda vida é luta, é o esforço para ser ela mesma".


José Ortega y Gasset - A rebelião das massas



AVISO: O texto a seguir, para ser melhor compreendido, pressupõe a leitura da primeira e da segunda postagens anteriormente publicadas desta série, disponíveis aqui e aqui.

No início deste conjunto de escritos sobre o pensamento de Ortega y Gasset, eu havia dito que suas considerações no campo da ética são preciosas - fazendo, contudo, a advertência de que o mesmo não se poderia dizer de suas ideias políticas reacionárias. As reflexões morais desse pensador incidem sobre duas noções que, de uns tempos pra cá, venho estudando com muito interesse: responsabilidade e esforço individual.

Como escrevi anteriormente, o filósofo espanhol divide a sociedade em dois grupos - minorias e massas - que não equivalem a classes sociais, mas sim a "classes de homens". Explicando melhor: nas minorias estão "indivíduos ou grupos de indivíduos especialmente qualificados"; nas massas encontram-se aqueles que se contentam apenas com sua mediocridade.

Por isso, n' A rebelião das massas*, Ortega y Gasset afirma que

"[...] a divisão mais radical que deve ser feita na humanidade é dividi-la em duas classes de criaturas: as que exigem muito de si mesmas e se acumulam de dificuldades e deveres, e as que não exigem de si nada de especial, para as quais viver é ser a cada instante o que já são, sem esforço para o aperfeiçoamento de si próprias, boias que vão à deriva".

E por que o homem-massa parece tão satisfeito, a exigir tão pouco de si próprio?

Segundo o pensador espanhol, o homem-massa contemporâneo - a despeito dos dados objetivos do mundo que indicam um estado de coisas bem pouco deleitável - é dominado, psicologicamente, pela "impressão inata e radical de que a vida é fácil, superabundante, sem limitações trágicas". Não se sentindo limitado, esse indivíduo procurará realizar e expressar livremente todos os seus desejos, sem receio algum de impor sua vulgaridade - pois não teme ser contrariado - e sem julgar necessário estabelecer compromissos éticos com a coletividade. Lembra uma criança mimada.

"Mimar" - escreve Gasset - "é não limitar os desejos, dar a um ser a impressão de que tudo lhe é permitido, que não é obrigado a nada. A criatura submetida a esse regime não tem noção de seus próprios limites. Por se evitar qualquer pressão à sua volta, qualquer choque com outros seres, chega a acreditar efetivamente que só ele existe, e se acostuma a não considerar os demais, principalmente a não considerar ninguém [como sendo intelectual e moralmente] superior a ele".

Gostaria de salientar, como escrevi antes, que todos nós inseridos em sociedades de massa, consciente ou inconscientemente, exercemos o papel de homens-massa, com maior ou menor intensidade. A grande questão, todavia, é: o que pretendemos fazer para escaparmos, pelo menos às vezes, da inércia intelectual e moral que caracteriza esse papel (caso, naturalmente, estejamos dispostos a isso)? Uma tal decisão implica procurar ser responsável (em relação à vida coletiva) e esforçar-se individualmente (para aprimorar-se como ser pensante).

Pode-se não concordar com a visão de mundo professada por José Ortega y Gasset n' A rebelião das massas, mas muitos de seus ensaios filosóficos têm pelo menos a intenção de nos fazer voltar os olhos para nossas próprias condutas, com o fito de nos tornar mais autocríticos. E incluo um último (e belíssimo) excerto de seu livro como fechamento da discussão até aqui empreendida:

"A vida que é antes de tudo o que podemos ser, vida possível, também é, por esse mesmo fato, decidir entre as possibilidades o que de fato vamos ser. Circunstância e decisão são dois elementos essenciais de que se compõe a vida. A circunstância - as possibilidades - é o que chamamos o mundo. A vida não escolhe seu mundo, mas viver é encontrar-se, de início, num mundo determinado que não pode ser trocado: neste de agora. Nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra nossa vida. Mas essa fatalidade vital não é semelhante à mecânica [...] Em vez de nos ser imposta uma trajetória, nos são impostas várias, o que, consequentemente, nos força... a escolher. É surpreendente a condição de nossa vida! Viver é sentir-se fatalmente forçado a exercer a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Não há um momento de descanso para nossa atividade de decisão. Inclusive quando, desesperados, nos abandonamos à sorte, decidimos não decidir. Portanto é falso dizer-se que na vida são 'as circunstâncias que decidem'. Ao contrário: as circunstâncias são o dilema sempre novo, ante o qual temos que nos decidir. Mas o que decide é o nosso caráter".
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* ORTEGA y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987 [Tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro]

BG de Hoje

Insone mais uma vez, fui trocando as estações do rádio e numa delas escutei ROBERTA SÁ, acompanhada pelo MPB 4, interpretando a maravilhosa canção Cicatrizes. A infelicidade que eu sentia permaneceu, é verdade, mas a madrugada ficou mais suportável daí em diante.