terça-feira, 12 de agosto de 2014

Carolina, a favela e a Literatura (II)


Escreverei sobre o valor propriamente literário, estético, do livro Quarto de despejo (como anunciei que faria hoje) na próxima semana. Julgo necessário discutir, antes, a questão a seguir.
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Lendo o ensaio Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio*, do historiador José Carlos S. B. Meihy, surpreendi-me ao saber que foi localizada uma caixa**, muito tempo depois da morte da escritora, contendo 37 cadernos, cujas páginas escritas ultrapassavam cinco mil. De acordo com Meihy:

"O acervo encontrado trazia uma quantidade grande de poemas, contos, quatro romances e três peças de teatro. Isso, entre lições escolares dos filhos, receitas de bolos, contabilidade doméstica. Escritos todos com a letra firme, clara e corrente de Carolina, tudo em papéis velhos encontrados no lixo, guardados sem o cuidado devido".

Em vida, além de Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus publicou outros quatro trabalhos: Casa de Alvenaria, Provérbios, Pedaços da fome e Diário de Bitita. Mas, como bem observa José Carlos S. B. Meihy,

"A existência preciosa de quatro romances enormes [e não publicados], por outro lado, demonstra que estamos em face de um caso único da história da cultura popular nacional, onde, na favela, uma autora semi-alfabetizada produziu uma obra que, segundo o impulso inicialmente dado, seria uma promessa de renovação de nossos critérios de definição cultural".

E por que tal renovação não se deu?

Adio a resposta para ressaltar, primeiramente, que, em diversas passagens de Quarto de despejo***, é perceptível um sentimento de autoconfiança (e expectativa positiva com relação a uma possível publicação), a despeito da vida infausta (a expressão é corriqueira no livro) sob a qual se encontrava a autora. Por exemplo:

"Vocês [as outras moradoras da favela] são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornece os argumentos".

Ou esta outra, mais direta:

"É que estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela".

E mais ainda:

"Tem hora que eu odeio o repórter Audálio Dantas. Se ele não prendesse o meu livro eu enviava os manuscritos para os Estados Unidos e já estava socegada". 
"- Pois é, Toninho, os editores do Brasil não imprime o que escrevo porque sou pobre e não tenho dinheiro para pagar. Por isso eu vou enviar o meu livro para os Estados Unidos. Ele deu-me varios endereços de editoras que eu devia procurar".

Carolina Maria de Jesus via a si mesma como poeta e, pelos excertos acima reproduzidos, percebe-se que também não duvidava da sua aptidão para a escrita narrativa e nem da validade de seu manuscrito no jogo editorial. Ainda assim, a obra dessa escritora não se tornou "uma promessa de renovação de nossos critérios de definição cultural". Muito em função do silêncio da crítica literária. A imprensa da época interessou-se por aquele fenômeno apenas enquanto fato "exótico"; os cadernos de cultura, no geral, limitaram-se (e até hoje assim o fazem) a consagrar o já consagrado. A crítica literária acadêmica, especializada, tinha outra "agenda" no momento em que a escritora surgia, apesar do contexto favorável da época (a despeito de se estar no período que antecedeu a ditadura militar) - ampliação do feminismo, do movimento negro e do maior interesse pela cultura popular.

Termino na próxima postagem, cumprindo a intenção manifestada no primeiro texto da série.
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* MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio. Revista USP, São Paulo, vol. 37, mar./mai. 1998, p. 82 - 91. Disponível em  <http://www.usp.br/revistausp/37/08-josecarlos.pdf>. Acesso em 14/04/2014

** O historiador localizou a caixa junto com a família da escritora e com Robert Levine, durante a elaboração do trabalho Cinderela negra - a saga de Carolina Maria de Jesus  (escrito em parceria com Levine).

*** JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8 ed. São Paulo: Ática, 2001

BG de Hoje

Repito no BG a dupla SÁ & GUARABYRA. Mas é porque fiz um exercício de autocrítica ao lembrar da canção Ziriguidum tchan. Explico: na minha modesta coleção de CDs há muito mais artistas ingleses e norte-americanos do que brasileiros. Estou longe de ser chauvinista; porém, às vezes, não me dou conta do quanto sou afetado por algo (a música pop) que me faz esquecer de olhar a meu redor e sentir-me saudavelmente brasileiro.