quinta-feira, 11 de julho de 2013

"Um pássaro, batendo as asas e amarrado pelos pés"

No conto A segunda vida *, dois personagens conversam: Monsenhor Romualdo de Sousa Caldas e José Maria. O primeiro não tem dúvida de que o segundo é louco. Em dado momento da narrativa, José Maria diz que sua "segunda vida é assim uma mocidade expansiva e impetuosa, enfreada por uma experiência virtual e tradicional". Pede ao religioso, seu interlocutor, uma comparação que ilustre o modo como vivia. Monsenhor Caldas arrisca: "- Suponho que vive assim como um pássaro, batendo as asas e amarrado pelos pés". O outro concorda e, demonstrando mesmo não estar bem da cachola, levanta-se da cadeira "agitando os braços, à maneira de asas [...] De cada vez que batia os braços nas coxas, levantava os calcanhares, dando ao corpo uma cadência de movimentos, e conservava os pés unidos, para mostrar que os tinha amarrados".

Pode parecer, por essa passagem, que o conto tem a intenção de ser cômico. Pelo contrário, é uma narrativa bem trágica de Machado de Assis.

José Maria diz ao padre que morrera com 68 anos de idade em 1860. Chegando no "outro mundo", teve que cumprir "uma lei eterna" e retornou numa nova vida, renascendo em 1861. Ainda segundo nos conta o personagem, poderia escolher voltar como "príncipe ou condutor de ônibus". José Maria considerava "indiferente nascer mendigo ou potentado [mas] com a condição de nascer experiente".

Monsenhor Caldas está apreensivo em relação ao visitante e "enquanto esperava o auxílio policial [...] desfazia-se em sorrisos e assentimentos de cabeça, espantava-se com ele, alegrava-se com ele, política útil com os loucos, as mulheres e os potentados". Ao mesmo tempo, o religioso fica intrigado com aquela figura que, "no meio do desalinho próprio do estado", fala "em termos polidos" e "apesar dos rompantes mórbidos, tinha maneiras". Só que o outro, além de carregar uma bengala (que pode ter a serventia de uma arma), mostrara um revólver ao padre, indicando ser potencialmente perigoso.

Ao retornar à vida cheio de experiência, José Maria "vivia fugindo de tudo":

"Não podia comer um figo às dentadas, como outrora; o receio do bicho diminuía-lhe o sabor. Não cria nas caras alegres da gente que ia pela rua: preocupações, desejos, ódios, tristezas, outras coisas, iam dissimuladas por umas três quartas partes delas. Vivia a temer um filho cego ou surdo-mudo, ou tuberculoso, ou assassino, etc. Não conseguia dar um jantar que não ficasse triste logo depois da sopa, pela ideia de que uma palavra sua, um gesto da mulher, qualquer falta de serviço podia sugerir o epigrama digestivo, na rua, debaixo de um lampião. A experiência dera-lhe o terror de ser empulhado. Confessava ao padre que, realmente, não tinha até agora lucrado nada; ao contrário, perdera até, porque fora levado ao sangue..."

Deixo o conto de lado nesse ponto - para não revelar o final deste ao(à) eventual leitor(a) que ainda não conheça essa narrativa - e tento explicar por que estou falando disso.

Independentemente de ser ou não um doido varrido, José Maria manifesta, penso eu, um sentimento perante a vida muito similar ao meu: o sofrimento por antecipação diante do caráter vicissitudinário da existência.

Um pássaro em pleno voo pode bem servir como metáfora para a vida de muita gente, sobretudo jovens. No meu caso, entretanto, a sensação que expus no parágrafo anterior provoca desagradáveis efeitos colaterais: pessimismo, inapetência, desconfiança e covardia. Talvez também leve à loucura, como acontece ao personagem de A segunda vida. De qualquer modo, nos dois casos, não se cogita voar pois, por antecipação medrosa e avessa ao risco intrínseco do viver, já assumimos, derrotados, que o bater de asas resultará, inevitavelmente, no malogro.
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* ASSIS, Machado de. A segunda vida. In: ____________. 50 contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 271-278 [seleção, introdução e notas de John Gledson]

BG de Hoje

Num disco muito bem produzido (Guitar Heaven: The Greatest Guitar Classics Of All Time) Carlos SANTANA regravou algumas canções ideais para que o guitarrista pudesse "viajar" à vontade. Sua versão de While My Guitar Gently Weeps (cantada por India.Arie e, no CD, com mais a participação do violoncelista Yo-Yo Ma) foi provavelmente a faixa mais tocada desse álbum nas rádios mundo afora.