quarta-feira, 3 de abril de 2013

Formar leitores está longe de ser uma missão fácil



O último número da revista Pátio (ensino médio, profissional e tecnológico), em seus artigos principais e na entrevista, destacou a relação do jovem com a leitura. O texto que mais me chamou atenção foi o de Luiz Percival Leme Britto, atualmente professor na Universidade Federal do Oeste do Pará, articulista cujos pontos de vista costumam me interessar pois escapam da arenga habitual do "pedagogês".

Em A liberdade, a crítica e a criatividade na formação do leitor *, Leme Britto trata de algo que o "incomoda sobremaneira": a vagueza com que se empregam os termos livre, autônomo, crítico e criativo nas tentativas de definir o tipo de leitor que, supostamente, cabe à escola formar.

Para o articulista,

"A escola é lugar próprio de aprender, e de aprender aquilo que não se aprende no trato da vida cotidiana, assim como ler e escrever. Está bem que se pode aprender a ler e escrever fora da escola, mas é na escola que esses conhecimentos e outros, próprios da produção intelectual organizada, encontram espaço para expandir-se e sistematizar-se, principalmente quando se enfrentam temas e conteúdos que transcendam o senso comum".

Por isso, ainda segundo Leme Britto, deveria existir na escola "um processo distinto de trabalho, uma maneira mais disciplinada de pensar, analisar, avaliar". Mas é isso que percebemos cotidianamente no espaço escolar?

Na mesma edição da Pátio, mais à frente, o psicólogo português José Morais diz na entrevista** que

"Se a escola ' mata ' o gosto pela leitura, não é porque propõe leituras distanciadas da realidade do jovem. É porque não há, prévia ou paralelamente, o esforço necessário para mostrar-lhe que a realidade que não é ainda a dele merece ser conhecida. A ideia de se ater àquilo que é a realidade já familiar é a própria negação do espírito de educação e de descoberta".

Permita-me uma digressão. Penso que, a partir dos anos 1990, graças às modas pedagógicas que frequentemente se sucedem como epidemias no meio educacional, visões reducionistas do construtivismo (oriundo da epistemologia genética de J. Piaget) e do sociointeracionismo (derivado, principalmente, da obra de L. S. Vygotsky) superdimensionaram o peso que caberia à "realidade do estudante" no modo como a escola deve funcionar em sua condição de repositório do conhecimento historicamente acumulado (sem falar nas abordagens ingênuas, em tom quase hagiolátrico, do pensamento de Paulo Freire, que vêm desde os anos 1960...). Essas visões superficiais e ingênuas são partilhadas por acadêmicos nos cursos de Pedagogia e, por incrível que pareça, por alguns ocupantes de cargos nas estruturas das Secretarias de Educação por aí afora. Em nome da defesa da "realidade do estudante" barateou-se a composição dos currículos e solapou-se ainda mais a combalida autoridade dos professores***. Para piorar, o ethos do esforço parece não mais fazer parte das "competências" a serem inculcadas nos estudantes, nem estes têm o costume de manifestá-lo.

Retornemos, entretanto, ao artigo citado no início da postagem. Leme Britto procura demonstrar que valores tais como liberdade, autonomia, crítica e criatividade não são "algo que se tem por decreto"; não são pontos de partida, mas de chegada. Devem ser conquistados e isso só é possível por meio da(s) experiência(s) vivenciada(s) pelo leitor/estudante. E como a escola participa (ou deveria participar) no desenvolvimento da(s) experiência(s) do leitor/estudante?

"Uma maneira concreta de formar o leitor crítico" - sugere Leme Britto - "de modo que tenha significado a afirmação de que o ' sentido da leitura ' resulta da experiência do leitor, é investir em situações em que aflore a necessidade de criar, buscar, criticar. O desafio da educação escolar está exatamente em ampliar as possibilidades de experiência, desafiando o aluno a ' parar para pensar ', ' a suspender o automatismo da ação ', a reconhecer-se e assumir-se como sujeito da ação. Esse movimento de afastamento do imediato e de recusa do deixar-se ir tampouco é algo que se manifesta espontaneamente".


Dizer que é uma maneira concreta não quer dizer que é simples de ser feito. "Parar para pensar" significa ser capaz de descolar-se, durante a reflexão, da realidade mais imediata em que se está imerso. Entretanto, as escolas (principalmente públicas) não estão conseguindo contribuir para a "suspensão do automatismo da ação", pois estão presas e imobilizadas na tal "realidade do estudante" e estão abandonando "a produção intelectual organizada", preferindo submergir na reprodução do senso comum.

A prática social da leitura é cada vez mais restrita (não estou falando da leitura vapt-vupt nas telas de celular e computadores). Pensando no desafio apontado por Luiz Percival Leme Britto, fica ainda mais evidente que formar leitores - verdadeiramente livres, autônomos, críticos e criativos - está muito longe de ser uma missão fácil. E duvido que a escola (pública básica) possa dar conta dela.
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* BRITTO, Luiz Percival Leme. A liberdade, a crítica e a criatividade na formação do leitor. Pátio - ensino médio, profissional e tecnológico, Porto Alegre, ano IV, n. 15, dez. 2012/fev. 2013. p. 14-17

** A missão de despertar o interesse pela leitura. Pátio - ensino médio, profissional e tecnológico, Porto Alegre, ano IV, n.15, dez. 2012/fev. 2013. p. 18-21

*** É bom esclarecer que estou usando a palavra autoridade num sentido mais próximo daquele empregado por Hannah Arendt em Entre o passado e o futuro, em que o termo não se define por associação a noções como mando ou coerção. mas que, além de estar ligada às qualificações específicas da profissão, "se assenta na responsabilidade que ele [professor] assume por este mundo. Face à criança, é como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança - Isso é o nosso mundo".


BG de Hoje

Entre as bandas que apareceram no boom do rock brasileiro nos anos 1980, o CAMISA DE VÊNUS foi uma das menos badaladas. É certo que a postura frequentemente arrogante do frontman Marcelo Nova gerava certa antipatia e a opção do conjunto por um som mais rockabilly e punk não estava no cardápio dos obtusos programadores. Mesmo que o grupo baiano não tivesse feito nenhuma outra coisa (e eles fizeram muito), já mereceria um lugar de honra em nossa música por ter gravado a excelente Deus, me dê grana.